Condenação sumária em rede nacional
A imagem da TV é espetacular. Espetacular no sentido debordiano*. Jogadores de Vasco e Sport discutem no centro de campo. De repente, eis que surge, no canto esquerdo da tela, o goleiro Gustavo, do clube pernambucano, correndo, tomando impulso e deferindo um golpe com o pé direito na altura da nuca do jogador cruzmaltino Elivélton. O pescoço do jovem atleta da agremiação de São Januário imediatamente executa o que os ortopedistas denominam “chicote”, qual seja, o movimento da cabeça para trás e para frente, que, em muitas ocasiões, provoca a fratura da coluna cervical, podendo levar à tetraplegia. O jogador agredido vai ao solo. Logo se forma uma aglomeração de atletas em volta. Uma ambulância entra em campo. Elivélton é prontamente atendido e recebe os primeiros socorros. O evento se passou na última segunda (25/07), durante a Taça Belo Horizonte, que reúne atletas da categoria juniors. Elivélton, o agredido, tem 19; Gustavo, o agressor, 17.
Durante todo o dia, programas esportivos, noticiários televisivos, radiofônicos, websites e redes sociais trataram de dar publicidade ao fato. A imagem foi repetida infinitas vezes, com requintes de sadismo, com o lance em slow motion, indo e voltando, no momento em que o pé direito de Gustavo atinge a nuca de Elivélton. A palavra “covardia” foi a mais comumente utilizada pela imprensa “especializada” no bruto esporte bretão para classificar o ato. Da bancada do respeitável Jornal Nacional, líder em audiência em todo o país, o apresentador Eraldo Pereira lembrou que o jogador fora “agredido covardemente”, com ênfase na pronúncia do advérbio de modo.
Com o decorrer das horas, foi possível saber que Elivélton passava bem e que não sofreria seqüelas. Já Gustavo, passara a conviver com o ódio não apenas de seus adversários, como também não poderia contar com o apoio do clube pelo qual atuara. Em nota oficial, o Sport Club do Recife, em seu sítio oficial, fazia saber que o goleiro não faria mais parte de seu quadro de atletas. Mesmo os pais de Gustavo, que acompanhavam o episódio através da imprensa, repreenderam o agressor dizendo-se “envergonhados”. O caso foi parar na delegacia da pequena Barão de Cocais, onde a partida fora realizada. O delegado Paulo Tavares Neto, oportunamente, diante de câmera e microfone da TV Globo, trajado elegantemente de terno azul marinho e gravata vermelha, aproveitou seus 15 segundos de fama para anunciar que o goleiro seria indiciado por tentativa de homicídio.
Mesmo sem sequer haver pisado no tribunal e enfrentado a solene soberba de juízes, promotores e advogados, Gustavo já estava condenado. O veredicto fora decretado pela instantaneidade das imagens em câmera lenta, jornalistas especializados em fait divers descartáveis, julgamentos atropelados e reflexões de 140 caracteres. Já era odiado em cadeia nacional por 190 milhões de brasileiros que, provavelmente, jamais se lembrarão de seu nome daqui a 5, 10 anos, caso realmente seja banido do esporte, conforme reivindicam os paladinos da justiça e convenientes combatentes da impunidade.
Estes – jornalistas, delegados e quejandos – desejam condenar o jovem desportista a uma pena máxima, alijando-o do convívio social, trancafiando-o entre quatro paredes, em um espaço exíguo ao lado de outros marginais como ele, onde não poderá desferir tesouras voadoras em atletas “de bem”, potenciais vítimas de seus impulsos assassinos. Pouco sabemos de Gustavo. Se possui realmente talento para a prática do ludopédio, se é casado ou tem filhos, ou mesmo alguma formação escolar que possa lhe garantir algum futuro longe das quatro linhas. Sabemos apenas que, em um instante de suposto descontrole emocional, tentou matar um colega de profissão, de acordo com a interpretação do delegado.
Se banido do futebol, Gustavo poderá, aí sim, perder sua honra, dignidade, auto-estima e, com elas, a perspectiva de um futuro promissor. Estigmatizado, será relegado ao desemprego ou a trabalhos onde possivelmente se submeterá à exploração no campo ou nos centros urbanos, como muitos de seus jovens conterrâneos sem instrução formal. Se condenado, como sugere o delegado, passará na cadeia por humilhações e violências ainda piores do que aquela que um dia cometeu dentro de um campo de futebol. Passará de desportista imaturo a profissional do crime, sem maiores possibilidades de reabilitação.
Após inicialmente ameaçar o atleta de demissão, o Sport Club do Recife parece ter voltado atrás. Agora, a direção da agremiação cogita reintegrar o jogador e prestar-lhe auxílio psicológico. Sinal de que, passado os primeiros sinais de destempero, a racionalidade parece ter voltado à tona. Gustavo tem a chance de fazer o mesmo.
* De acordo com Guy Debord, autor de A sociedade do espetáculo (1997, Contraponto), “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”.
(*) Pedro Barreto é jornalista e mestrando em Comunicação Social pela UFRJ.
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