As aparências enganam, sim; que o diga o império midiático

As reações dos ingleses ao escândalo do tablóide News of the World - uma espécie de arquétipo dos jornais do magnata Rupert Murdoch - proprietário do maior conglomerado midíatico do mundo (o News Corp) - parecem se alinhar ao que seria proverbial na Inglaterra: a recusa aos embustes "muito evidentes". Mas há uma providencial distância, mesmo na Inglaterra, entre a verdade e a sua versão. Albert Finney, grande ator inglês, recusou o título de "sir" que a realeza britânica concede a certos cidadãos pela "relevância" de seu trabalho. Explicou que, como filho de operário, um título de "sir" não alteraria em nada seu status social - mas aumentaria o que ele considerava o pior defeito dos ingleses - o esnobismo. Achava que se se somasse a outros nomes de artistas, cantores, e atores seria apenas mais um a magnificar um laurel sem sentido algum. Ninguém se preocupou muito em julgá-lo um mal-criado que devia favores à rainha. Mas parece ter respondido à altura a um mundo de aparências que não é apanágio só da Inglaterra - mas de todos os países, incluindo-se aí, de forma especial, o Brasil.

Granham Green, escritor inglês, tinha franco desprezo por algumas instituições britânicas, a começar pelo seu aparelho de informação. No seu "Nosso Homem em Havana", as referências à CIA e a sua pretensão de ser onisciente mereceram uma dos melhores romances em forma de sátira que se escreveram em língua inglesa. Mas Graham Green nunca disfarçou seu desprezo também pelo serviço secreto inglês a que ele próprio pertenceu durante a Segunda Guerra. A pergunta que se impõe talvez seja reveladora: até quando certo tipo de imprensa e os serviços secretos são atividades paralelas? No fundo, é uma questão a que o próprio grupo de Murdoch respondeu - ambos se nutrem das histórias que ninguém deixa de contar por pertencerem ao âmbito do privado. Para Murdoch e seu grupo, os métodos da imprensa investigativa e dos serviços ditos "de inteligência", sempre se justificaram no que lhes seria comum - que são os seus fins. O fato de uma revista conseguir descobrir a corrupção de um ministro, pode não ser necessariamente obtido por "meios ilegais" - ou seja por outros métodos que não os das escutas telefônicas clandestinas, ou pela compra de informações - mas as diferenças podem também ser muito tênues. O fundamental, dirá a opinião pública, é que os crimes sejam descobertos. E denunciados - o que, realmente, é muito bom para a sociedade.

Não foi bem isso, porém,o que aconteceu na Inglaterra. Lá os grampos ilegais teriam sido usados à larga, o que provocou a reação dos anunciantes do tablóide. Mesmo assim, o que se questiona é a pergunta que se impões: quando da renúncia do presidente Nixon, dos EUA, foram por métodos rigorosamente legais que os dois jornalistas do "Washigton Post" descobriram as mentiras do então primeiro mandatário do país? Não se trata, aliás, de uma questão tão contemporânea quanto se imagina. Nas descobertas da imprensa, haveria um rito sherloquiano, difícil de ser contestado: Conan Doyle, na construção de seu personagem, Sherlock Holmes faz questão de ressaltar o processo intelectual do detetive. A sua mente brilhante descobrirá o autor dos crimes, não por escutas ao pé da porta, mas por processos que teriam um viés até científico. Num tempo em que a ciência podia responder a tudo sobre a natureza, o mundo e o caráter das pessoas, Holmes manterá a fleuma e a elegância. Nunca lhe ocorre valer-se de intuições ou de preconceitos: é um cientista - máxime, um proto-repórter investigativo - ou seja, serão sempre esses tipos que apreciamos ver na televisão, nos jornais ou nos rádios. E que relemos no dia seguinte, nos diários, a desfilarem como exemplos de inteligência pela suprema façanha não só para descobrir crimes, mas pela honestidade que perpassa seus feitos e revelações.

Vistos genericamente, de fato, policiais dessa estirpe são também repórteres brilhantes. Sem métodos violentos ou desonestos, eles chegam à solução dos crimes apenas pelo raciocínio. Digamos que nada disso seja sequer parecido com as ações do grupo do magnata australiano, nascido em Israel mas de cidadania também americana. Conjetura-se, porém, que o sucesso de Murdoch e seus asseclas são, apesar de tudo, perfeitamente adequados ao mundo em que vivemos. Com outras palavras e para dizer o mesmo: Murdoch não faria sucesso a ponto de se tornar o maior magnata das comunicações, não fosse a satisfação com que o Tea Party - a extrema direita do Partido Republicano norte-americano - o lê. E o divulga como o supra sumo da sagacidade e das boas idéias. Diga-se o que se disser, o grupo de Murdoch é um consenso indiscutível nas hostes conservadoras do mundo.

São, a propósito, conhecidas as ações que se contrapõem aos consensos. Era consensual na França do século XIX, que o capitão Alfred Dreyfus tinha traído seu país e que merecia a cadeia sub-humana a que fora relegado na Guiana Francesa. Se ao fim do processo não houvesse um escritor e romancista, Émile Zola, a execrar publicamente a decisão dos militares e da Igreja católica que os apoiava, muito provavelmente não teria ocorrido nada: Dreyfus continuaria na cadeia até a morte. É um exemplo clássico que parece embaralhar a defesa de Murdoch: não é por uma mera coincidência que seu conglomerado midíaco criou consensos. Assim como era consensual na França de Zola, que Dreyfus era um traidor ("até por ser judeu", conclamava a maior parte do clero católico), não são menos unívocas as teses de Murdoch que seus jornais e suas redes de TV escolham suas vítimas, sempre em nome da iniciativa privada. E que mesmo que por outros métodos - um mero "discurso do método" digamos - haja sempre razões para absolver as culpas do sistema, justamente para impô-lo de novo e sempre agressivamente como inculpável. A ninguém é dado dizer nas páginas do sr. Ruppert Murdoch, que os mercados sejam os responsáveis pela crise do capitalismo neste começo de século. Pelo contrário, a apropriação das riquezas dos países se deu sempre em conformidade com as razões eternas do capital - que são eternas, por serem do capital.

Há mais de um aspecto interessante nesse processo todo. E parece se alçar para além da questão das culpas. Fala-se do que se opõe, mais uma vez, a liberdade de imprensa à liberdade dos oligopólios. Para os defensores da Inquisição, como Torquemada ou mesmo São Domingos, o Verbo Divino sempre "se faria carne". Por outra, sempre estaria certo por se expressar pela boca de seus representantes (leia-se portadores da infalibilidade dos interlocutores de Deus). Ainda que sob torturas, a confissão dos acusados se faria eternamente em conformidade com a vontade Divina. Troque-se Deus pela liberdade do mercado, e as desculpas que o sr. Murdoch, seu filho e seus asseclas deram no parlamento inglês, será considerada apenas um pequeno deslize - um acidente de trabalho digamos; no mais, não cabe discutir se o oligopólios de empresas jornalísticas podem tudo em nome da liberdade; ou se o grande processo inquisitorial deverá continuar com a imprensa graúda, donatária do direito da última palavra, ainda que o seja para justificar os engôdos gigantescos, monstruosos. Que não necessitarão de justificativas para se imporem: Roma locuta, causa finita ("Roma disse; o processo deve terminar") repetiam os padres, para justificarem o fim das apelações; ou antes, para manterem incólume a estrutura da justiça inquisitorial. Qualquer semelhança....

Talvez não seja irônico, porém, que o processo que envolve um oligopólio midíatico, ocorra no país tido como o berço da imprensa livre. Não é uma novidade que graças à imprensa, principalmente do sr. Murdoch, o assassínio do brasileiro Jean Charles de Meneses pela Scotland Yard tenha passado como um mero acidente. Lembra-se, em tempo, que foi também por obra e graça da imprensa britânica que o escritor Oscar Wilde acabou condenado à prisão por ser flagrado em seu homossexualismo. Daquela época em diante, falou-se mal das leis homofóbicas - que, oportunamente e já há anos, foram abolidas não só na Inglaterra. Mas quase não se comenta o que os jornais afirmavam na época; e o quanto os jornalistas - os donos dos jornais, melhor dizendo - deveriam ser culpabilizados por não terem afrontado a legislação e os costumes de seu próprio país. E em nome da liberdade.

As coisas, de fato, surpreendem: o sr. Tony Blair disse em alto e bom som que tinha "provas" da existência das armas de destruição em massa em poder do governo iraquiano. Nunca se comprovou de que estava certo; aliás, o que se provou é que ele estava errado - mas a imprensa do sr. Murdoch se encarregou não só de não cobrá-la. Imposto o dito pelo não dito e, claro, a despeito de milhares de mortes depois (inclusive inglesas), eis que o ex-primeiro ministro continua desfilando sua inegável simpatia, sem que ninguém lhe cobre a "destruição em massa" - essa devidamente patrocinada pelas tropas britânicas e seus aliados. E que sempre encontraram na mídia do sr. Murdoch a pá-de-cal oportuna para que nada fosse cobrado de ninguém.

Em bom latim, talvez o católico Graham Greene lembrasse as palavras da Bíblia: Sic transit gloria mundi - assim passa a glória do mundo. Mas alguém duvida de que o teatro vai continuar; e que o conglomerado do grande capo australiano persistirá dando as cartas, não só na Inglaterra e nos Estados Unidos, mas também no mundo, já que as tenazes do New Corp se estenderiam também à América Latina?

Há muito de insidioso sob a égide da liberdade. A escritora francesa, madame Roland, que perdeu a cabeça a reclamar dos crimes cometidos em nome da liberdade, talvez alertasse para o que é cada vez mais comum; que a imprensa sempre invoque os seus direitos para atentar justamente contra a liberdade. É isso mesmo, mas alguém desconfia de que não vá continuar assim? São poucos os indícios de que à versão, haverá, um dia, o "triunfo da verdade". O direito à liberdade de imprensa parece se estreitar sempre na consideração feita, anos atrás, pelo dono de um grande jornal brasileiro: se os jornalistas quisessem escrever livremente - eles que fundassem os seus próprios jornais. Digamos, como na velha fórmula do padeiro da esquina que, quem não tem capital, não se estabeleça. Já, quem tem, que exerça a sua liberdade - principalmente no direito de mentir.

O mais são pancadinhas na cabeça dos embusteiros muito evidentes - não mais que meros cascudos públicos para que tudo continue como está. Nada mais, em suma, do que as aparências detectadas por Albert Finney.

Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

Comentários

Mais Lidas

O que a mídia de celebridades faz com Anitta deveria ser crime

Guru de Marina disse que é preciso aumentar a carne e o leite

A parcialidade é o menor dos problemas da mídia golpista. Por Léo Mendes