Quando os pilotos eram reis

Por Amir Labaki | Para o Valor (para assinantes)



"Rush" retrata dramático acidente em que Niki Lauda (Daniel Bruhl, na foto) ficou por mais de um minuto no carro em chamas


Ainda pré-adolescente, nos anos 1970, acompanhei pela TV e pela imprensa a era a um só tempo trágica e romântica da Fórmula 1 agora reconstituída pelo envolvente "Rush - No Limite da Emoção". Ron Howard assina a direção e Peter Morgan, o roteiro, repetindo a bem-sucedida parceria de "Frost/Nixon" (2008).

Morgan, meu exato contemporâneo (1963), originou o projeto, estruturando-o a partir de mais um duelo de personalidades opostas, como é característico de seus roteiros mais célebres. Basta lembrar, além do drama criado a partir das entrevistas que opuseram o ex-presidente americano ao entrevistador britânico, sua trilogia centrada no ex-primeiro ministro britânico Tony Blair.

O tríptico é formado pelo telefilme "The Deal" (2003), sobre o pacto entre Blair e Gordon Brown que renovou o Partido Trabalhista e o levou de volta ao poder; por "A Rainha" (2006), opondo Elizabeth II e o recém- empossado primeiro-ministro durante o traumático adeus à princesa Diana; e pelo filme também feito para a TV "The Special Relationship" (2010), que acompanha a cumplicidade entre Blair e o presidente americano Bill Clinton durante o escândalo Mônica Lewinski.

Para arquitetar "Rush", Morgan parece ter encontrado inspiração no belíssimo "Senna" (2010), de Asif Kapadia, que centrou o retrato do campeão brasileiro na rivalidade, nas pistas e fora delas, entre Ayrton Senna e o francês Alain Prost. "Rush" retrocede uma década e meia para focalizar o embate, também dentro e fora dos carros, entre o piloto austríaco Niki Lauda e o britânico James Hunt (1947-1993).

Os paralelos são notáveis. Coproduzidos pela britânica Working Title, tanto "Rush" quanto "Senna" têm como epicentros dramáticos temporadas marcadas por intensas disputas, as de 1976 e 1994, decididas ambas apenas na última corrida. Foram também anos trágicos, marcados por uma série de acidentes fatais que fizeram escalar a pressão por melhores condições de segurança para os pilotos.

Nesse sentido, assistindo a "Rush" veio-me à mente a nova conclusão filmada por Roman Polanski para o documentário "Weekend of a Champion", que produziu e estrelou em 1971 para retratar seu amigo e então campeão Jackie Stewart, relançado na presença de ambos no último Festival de Cannes. O tricampeão escocês (1969/1971/1973), hoje aos 74 anos, lembrou emocionadamente para Polanski quão frágeis e inseguros eram os automóveis de Fórmula 1 de sua época, e quantas vidas foram perdidas até que fossem alcançados os invejáveis padrões atuais.

"Rush" explora bem a polarização entre as personalidades de Lauda e Hunt - apolíneo/cerebral e dionisíaco/ arrojado, respectivamente -, ainda que pareça apimentar um pouco a real rivalidade nas pistas, retrocedendo-a para as origens de ambos na Fórmula 3.

Lauda estreou antes na F1, chegou primeiro a uma das escuderias principais (a Ferrari, em 1974), conquistando já no ano seguinte aquele o primeiro de seus três títulos (os outros foram em 1977 e 1984). Hunt debutou na categoria em 1973, amargou três difíceis anos numa escuderia de segunda, mas conquistou seu primeiro e único título já em sua primeira temporada com um carro competitivo, a McLaren - mas nas circunstâncias atípicas daquele fatídico ano de 1976.

Niki Lauda liderava com folga aquela temporada quando sofreu um grave acidente na segunda volta do Grande Prêmio da Alemanha, em Nurburgring, prova que o piloto austríaco tentara sem sucesso cancelar devido às condições precárias de segurança. Lauda ficou por mais de um minuto preso em sua Ferrari em chamas. Sofreu queimaduras intensas no rosto e no corpo, danificou os pulmões com gases tóxicos e entrou em coma. Seis semanas e duas provas mais tarde ei-lo de volta ao cockpit da Ferrari para defender sua liderança do campeonato, ameaçada por vitórias de Hunt.

A reconstituição do acidente por Ron Howard é apenas a mais brilhante sequência de um filme que devolve à Fórmula 1 uma aura mágica há muito perdida nas corridas bimensais de nossos domingos. Confirmando-se como um dos raros diretores atuais de Hollywood que entende de atores tanto quanto de máquinas, Howard extrai uma performance empática de Chris Hemsworth (de "Thor") como Hunt e, no papel de Lauda, obtém talvez o melhor desempenho de Daniel Bruhl desde "Adeus, Lênin!" (2003).

Nem tudo é exatamente verdade, mas Howard e Morgan conseguem o feito de transmitir sensações reais, raras em filmes sobre corridas, com a exceção maior do clássico "Grand Prix" (1966), de John Frankenheimer: o fascínio pela velocidade e a obsessão pela vitória. Foram ainda fiéis a um sentimento comum que partilhei, no calor da hora, em relação a seus personagens: nós admirávamos Niki Lauda, mas vibrávamos mesmo - ainda que por pouco tempo - com James Hunt.

Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários.
E-mail: labaki@etudoverdade.com.br
Site do festival: www.etudoverdade.com.br

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