Descriminalizar o aborto é salvar vidas
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Maíra Kubik Mano
Hoje, 28/09, é o dia latino-americano pela descriminalização do aborto e atos e protestos em diversas cidades vão lembrar o que ninguém deveria esquecer: que a interrupção voluntária da gravidez é uma realidade no Brasil e uma questão de saúde pública.
De acordo com dados do SUS (Sistema Único de Saúde), mais de um milhão de mulheres recorrem ao aborto voluntário anualmente em nosso país e boa parte deles é feita em condições precárias de higiene. Apenas aquelas que possuem recursos financeiros conseguem ter acesso a clínicas especializadas e podem pagar não só pelo tratamento médico, mas também pelo silêncio.
Cálculos da OMS (Organização Mundial de Saúde) indicam que a taxa de mortalidade em decorrência de abortos induzidos varia de 0,2 a 1,2 mortes a cada 100 mil abortos nos países onde a prática é legalizada – ou seja, segura. Naqueles onde não é, o número sobe para 330 mortes a cada 100 mil abortos.
Adaptando um pouco essa conta: se o aborto é um fato cotidiano no Brasil e possui duas modalidades que dependem diretamente da renda da pessoa – a segura e a insegura, não é difícil concluir que estamos condenando à morte as mulheres pobres.
Reproduzo abaixo uma matéria que escrevi à época da campanha presidencial de 2010 e que continua absolutamente atual. Somos todas clandestinas.
Tabu no Brasil, aborto é menos restrito na maioria dos países
Estamos em um país sul-americano colonizado por europeus católicos. Nação que sofreu com uma ditadura sangrenta e só anos depois, com a democracia já instaurada, assistiu aos generais responsáveis por dizimar a esquerda armada serem julgados e condenados. Em seguida, e não sem grande polêmica, seu Senado aprovou o casamento gay. Agora, a próxima pauta em discussão é a descriminalização do aborto.
O país colonizado a que se refere o parágrafo não é o Brasil. Diz respeito à Argentina. Nesse mesmo mês de outubro de 2010, enquanto nossos vizinhos iniciam um debate com chances reais de legalizar interrupções voluntárias de gravidez (IVG), assistimos aqui ao oposto, com a perseguição a quem defende tal posicionamento. Que o digam os candidatos à Presidência do Brasil José Serra (PSDB) e Dilma Rousseff (PT), cujas campanhas buscam dissociá-los de qualquer ação pró-aborto. Afinal, qual a explicação para tamanha discrepância, em países tão próximos, geográfica e historicamente?
“Durante os últimos anos, e devido principalmente ao trabalho incansável do movimento de mulheres, a opinião pública mudou”, analisou a advogada argentina Susana Chiarotti, co-autora do livroRealidades y coyunturas del aborto – entre el derecho y la necesidad (Realidades e conjunturas do aborto – entre o direito e a necessidade, sem tradução para o português), que cita o Brasil como um exemplo de retrocesso.
O caso narrado é episódio em 2004, quando, durante quatro meses, foi possível realizar abortos de fetos anencéfalos, ou seja, que não tiveram a formação neurológica correta e não conseguiriam sobreviver fora do útero. A autorização foi possível graças a uma ação ajuizada naquele ano pela CNTS (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde), que alegou ofensa à dignidade humana da mãe, prevista no artigo 5º da Constituição Federal. Na ocasião, o STF (Supremo Tribunal Federal) brasileiro entendeu que era preciso antes validar o mérito do instrumento utilizado pela CNTS, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, o que ocorreu em 2005. Desde então, a ação aguarda julgamento do Supremo.
Se aprovar a descriminalização do aborto sem pressupostos, a Argentina se somará a outros 56 países do mundo que adotam essa prática – variável a depender do tempo limite de gestação para realizar a prática. Além deles, 37 nações admitem IVGs por motivos econômicos ou de saúde mental e mais 36 aceitam a interrupção para preservar a saúde física da mulher, de uma maneira mais ampla – grupo ao qual os argentinos já fazem parte, com destaque para a legislação da província de Buenos Aires.
No caso de Estados Unidos, México e Austrália, a legislação nacional dá ampla liberdade para o aborto, mas os estados da federação podem limitá-lo ou até mesmo proibi-lo. No total, são 93 Estados que, de forma menos restritiva, descriminalizaram o aborto, de acordo com os dados da associação Reproductive Rights. Algo em torno de 74,3% da população mundial.
Do outro lado dessa conta está o Brasil e outros 67 países que proíbem completamente a prática ou abrem uma exceção bastante limitada, como em caso de risco extremo para a vida da mãe e de estupro. Estes somam 25,7% dos habitantes do planeta, a maioria na África, América Latina e no mundo islâmico.
“Especialmente nos países da América Latina há uma influência muito forte do catolicismo Existe um movimento conservador em torno dos temas dos direitos reprodutivos e o Brasil não fica atrás. Temos uma bancada de parlamentares que se diz em defesa da vida, mas só estanca o debate e tenta retroceder naqueles pontos onde o aborto já foi aprovado, ou seja, em caso de estupro e risco de vida”, afirmou Rosângela Dualib, da associação Católicas pelo Direito de Decidir, que atua na Europa e na América.
Novas perspectivas
Entre os que recentemente modificaram a legislação favoravelmente ao aborto está a Espanha. Desde fevereiro deste ano, o país, de forte tradição católica, mas laico, autoriza a interrupção da gravidez até a 14ª semana, sem qualquer restrição, e até a 22ª condicionada à risco à vida da gestante ou má formação fetal. A grande novidade, porém, ficou por conta da permissão de jovens entre 16 e 18 anos, consideradas menores de idade, a interromperem voluntariamente a gravidez sem consentimento dos pais. O ponto foi um dos mais ressaltados nos protestos contrários à aprovação da lei.
No vizinho e igualmente devoto Portugal, a alteração ocorreu há três anos, referendada por plebiscito popular em que a descriminalização do aborto obteve 59% de aprovação. A diferença para a Espanha ficou justamente na notificação parental de adolescentes, ainda obrigatória. Apenas entre 2008 e 2009, cerca de 39 mil abortos foram feitos legalmente no país.
A lei portuguesa se assemelha também a de outro país próximo onde o aborto já é uma realidade há quase cinco décadas: a França. Em ambos, há um tempo mínimo obrigatório para refletir sobre a decisão a partir do atendimento inicial dado à mulher pelo sistema público de saúde. Quem optar por interromper uma gravidez recebe apoio psicológico e social para lidar com a situação.
Associado a isso está a disseminação de políticas de planejamento familiar e prevenção de gravidez, que recebem bastante ênfase (e verbas) na Europa. De acordo com Anne Daguerre, pesquisadora associada da Sciences Po, em Paris, “a Holanda é o melhor exemplo de uma política empreendedora em matéria de educação sexual e acesso aos contraceptivos: 75% das holandesas de 15 a 44 anos utilizam algum método moderno para evitar a gravidez. Como consequência, a taxa de abortos no país é uma das mais reduzidas da Europa: oito em cada mil gestações. As IVGs são praticadas em clínicas especializadas, por médicos altamente qualificados. E o atendimento conta com a cobertura integral de uma empresa pública de seguros.”
De fato, uma pesquisa feita em 2007 pela OMS (Organização Mundial da Saúde) demonstra que nos países onde o aborto é permitido por lei, o número de procedimentos tende a cair – com exceção de Cuba e do Vietnã, onde o acesso a métodos contraceptivos é bastante restrito. “A prática tem mostrado que, nos países onde o aborto é legalizado, há um crescimento inicial, pela demanda reprimida, e depois isso se estabiliza e há uma diminuição subsequente. Isso porque as mulheres que passaram por um aborto já saem dos sistemas de saúde com um método contraceptivo adequado, escolhido a partir das informações que recebeu nessas instituições”, afirmou Rosângela Dualib.
Segundo ela, esses dados vão contra discurso propagado recentemente no Brasil, que tende a ver a interrupção voluntária da gravidez como uma forma de prevenção, e não de remediar uma situação indesejada. “Nenhuma mulher passa incólume física e psicologicamente por uma experiência dessas. Dizer que as mulheres vão eleger isso como método contraceptivo é uma falácia. A taxa tende a diminuir”, completou.
Nos cálculos do SUS (Sistema Único de Saúde), cerca de um milhão de abortos inseguros são realizados anualmente no Brasil; uma em cada cinco mulheres já teria recorrido à prática ao menos uma vez em sua vida, sendo a maioria delas casada, com mais de 18 anos e identificada com alguma religião. Uma realidade que bate à porta de todos.
Aborto ilegal é 300 vezes mais perigoso para a mulher
Como fruto da Conferência Mundial de Direitos Humanos, celebrada em Viena em 1993, foi reconhecido que os direitos das mulheres são também direitos humanos e que os países deveriam garantir uma atenção adequada à sua saúde, assim como ao planejamento familiar.
De maneira complementar, desde 1994, após a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, os membros da ONU (Organização das Nações Unidas) reconhecem como direitos humanos aqueles relacionados à reprodução e à sexualidade.
Em 1995, durante a IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher, o Desenvolvimento e a Paz, realizada em Pequim, foi firmada uma Plataforma para a Ação, onde os Estados afirmam que “a capacidade de as mulheres controlarem sua própria fecundidade constitui uma base fundamental para desfrutar outros direitos”. No texto final, pede-se aos países que atentem para “a possibilidade de re visar as legislações que prevêem medidas punitivas contra as mulheres que fizeram abortos ilegais”.
Além disso, “levando em consideração que o aborto inseguro é uma grave ameaça à vida e à saúde da mulher”, propôs-se, como objetivo estratégico, “promover pesquisas dedicadas a compreender e encarar com mais eficácia as condições que determinam o aborto induzido e suas conseqüências, incluindo efeitos futuros na fecundidade, saúde reprodutiva e mental e na prática contraceptiva”.
Mortalidade da mulher
Segundo cálculos da OMS (Organização Mundial de Saúde), a taxa de mortalidade devida a abortos induzidos varia de 0,2 a 1,2 mortes a cada 100 mil abortos nos países onde a prática é legalizada; naqueles onde não é, o número sobe para 330 mortes a cada 100 mil abortos. Cerca de 13% das aproximadamente 600 mil mortes por ano de mulheres relacionadas à gestação e ao parto ocorrem em decorrência de abortos inseguros, ou seja, sem recursos mínimos de higiene e assistência capacitada.
Paralelamente a essas discussões foi criada, em 1998, a Corte Penal Internacional, com o objetivo de julgar indivíduos acusados de violar os acordos internacionais. Em seu estatuto está a questão da gravidez forçada, que é considerada um crime de lesa humanidade e um crime de guerra junto com a violência, a escravidão sexual, a prostituição forçada, a esterilização forçada e outros tipos de abusos sexuais tão graves quanto.
Em 16 de setembro de 2010, a ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet, foi nomeada para coordenar a recém-criada ONU Mulher, uma espécie de “superagência” das Nações Unidas que reunirá as quatro já existentes relacionadas ao tema (o Fundo para o Desenvolvimento da Mulher – Unifem, a Divisão da ONU para o Avanço da Mulher, o Instituto Internacional de Pesquisas e Capacitação para a Promoção da Mulher e o Escritório Especial em Assuntos de Gênero).
A nomeação foi recebida positivamente por grupos pró-aborto e vista como uma possibilidade para avançar na discussão sobre sua descriminalização. Ainda que o Chile tenha uma das legislações mais proibitivas do mundo, não aceitando nenhuma exceção às interrupções voluntárias de gestações, quando presidente Bachelet apoiava a chamada “pílula do dia seguinte”, que previne a gravidez até 72 horas após o sexo sem proteção.
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