A direita saiu do armário

Matheus Pichonelli - CartaCapital


A direita saiu do armário. Em meio aos protestos de junho, grupos de manifestantes tomaram as ruas e as redes sociais alinhados a discursos e propostas que negavam, no tom e na forma, a vocação original das mobilizações, iniciadas a partir de uma demanda clara: a suspensão do aumento das passagens de ônibus das grandes cidades.

A esses pedidos se somaram bandeiras do pensamento conservador que só aparentemente estava superado, entre elas o repúdio aos partidos políticos e a políticas sociais.

Antes dos movimentos, este pensamento estava representado no Congresso, no discurso moralista em torno da corrupção, na guinada à direita do principal partido de oposição e nas reações às mudanças sociais desenhadas a partir das políticas afirmativas, como as cotas raciais.

O debate sobre o ressurgimento do conservadorismo político no Brasil contemporâneo reuniu na terça-feira 24, durante o 37º Encontro Anual da Anpocs, quatro dos principais estudiosos do tema. E serviu como um alerta ao flerte para as soluções antidemocráticas que têm cercado a agenda política nacional.

Em sua exposição, o professor de ciência política da UFPR Adriano Codato traçou um perfil dos deputados federais eleitos por partidos declaradamente de direita desde 1945 até a eleição de 2010.

Se antes os deputados direitistas se concentravam na Arena e no PDS, no segundo ciclo democrático, a partir de 1982, espalharam-se por legendas como o DEM, o PSC, o PRB, o PTB e o antigo PL. São partidos que, segundo ele, possuem uma lógica própria de atuação e recrutamento social dentro do empresariado. Por este critério, explicou o pesquisador, foram incluídas legendas como o PSDB, que segundo ele recruta outros perfis de lideranças políticas, notadamente profissionais liberais.

Codato analisou mais 7 mil representantes eleitos e concluiu: apesar de fazerem mais barulho, os chamados comunicadores de inclinações autoritárias têm menos representação do que os empresários na Câmara.

Houve, no entanto, um deslocamento. Com a industrialização e as políticas sociais, o coronel cede cada vez mais espaço ao empresário urbano, embora ainda haja uma forte presença de ruralistas nestes partidos. A maioria desses políticos ainda é eleita no Nordeste, mas não na mesma proporção observada antes do segundo ciclo democrático.
Eles também envelheceram: antes, concentravam-se na faixa entre 35 e 50 anos. Agora são mais comuns entre grupos de 60 anos. Codato ressaltou também o crescimento de pastores evangélicos neste grupo a partir de 1982.

Dentro deste segundo ciclo democrático, o pesquisador notou que, a partir de 2002, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência, houve uma redução na proporção de políticos de partidos conservadores no Nordeste. “Percebemos que a direita está saindo do Nordeste. Não saiu totalmente, mas está diminuindo.”

Foi ao longo deste segundo ciclo, no entanto, que um partido nascido à esquerda do PMDB de José Sarney, presidente da República na época, e Orestes Quércia, então governador paulista, apresentou uma guinada à direita e passou a disputar os votos mais conservadores do eleitorado.

Apesar da nomenclatura e do histórico de inclinação social-democrata, a princípio distante da formação conservadora clássica, o PSDB tem ocupado nas últimas eleições uma posição que antes combatia. Foi o que afirmou em sua exposição o cientista político e professor da FGV-SP Claudio Couto.

O acadêmico traçou um histórico da atuação da legenda a partir da eleição de Luiza Erundina na cidade de São Paulo, quando PT e PSDB combatiam, do mesmo lado, o malufismo. A vitória petista nas urnas não aproximou os dois partidos. Pelo contrário: a polarização entre eles se tornou cada vez maior, embora tivessem atuado em certo período no mesmo campo, como quando faziam oposição a Fernando Collor de Mello.

A guinada à direita dos tucanos, de acordo com o professor, tem início com a inclinação do PT em direção ao centro a partir da Carta ao Povo brasileiro em que o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva se comprometia a manter as bases econômicas do governo Fernando Henrique Cardoso. “O PT só não se tornou um partido centrista porque conseguiu implementar as políticas sociais. Mas tirou o lugar do PSDB ao centro, se moderou e deixou o PSDB sem discurso.”

Um discurso de oposição chegou a ser esboçado durante o escândalo do chamado “mensalão”, quando, segundo Couto, os tucanos substituíram a crítica ideológica pela crítica moral aos adversários.

Em vão. O discurso chegou a fazer efeito em uma classe média e classe média alta que perdiam força política à medida que o PT, sob Lula, se firmava como o partido dos pobres. Como exemplo deste movimento, Couto citou um artigo de Fernando Henrique Cardoso em que defendia a busca, pelo PSDB, das camadas médias para “não falar sozinho diante do povão”. Para o ex-presidente tucano, os governos petistas haviam conseguido cooptar os movimentos sociais.

“Com o tempo, o PSDB herdou o voto de Maluf, que encolhia. O discurso anticorrupção se tornou discurso fundamental pelos novos conservadores recauchutados. Antes o eleitorado à esquerda votava em Covas para evitar a eleição de Maluf e Francisco Rossi. Hoje o (governador de São Paulo, Geraldo) Alckmin não é diferente de Fleury e Maluf, sobretudo em relação à política de segurança pública”.

Outro movimento simbólico do PSDB em direção à direita, segundo ele, foi a presença do ex-ministro José Serra, antes autodeclarado desenvolvimentista, nos lançamentos de dois livros de Reinaldo Azevedo, que faz de seu blog uma das principais trincheiras do reacionarismo nacional. Nas duas ocasiões, Serra era candidato: a governador, em 2006, e a prefeito de São Paulo, em 2012.

Como consequência, resta hoje ao PSDB atacar os gastos sociais e o “Estado paternalista” em suas propagandas oficiais encabeçadas agora pelo mineiro Aécio Neves, provável candidato a presidente pela legenda.

Discurso antissistema e anticotas.
A apropriação, por parte da oposição, do discurso anticorrupção é outro sintoma da ascensão do pensamento conservador. Segundo Fernando Filgueiras, professor de teoria política da UFMG, o discurso em torno da corrupção tem se constituído, no jogo democrático e na opinião pública, a partir de uma perspectiva moralista e não da moralidade do debate.

Trata-se de um discurso assertório que a experiência histórica transformou em tragédias recentes, como o udenismo da era Vargas. É quando, segundo o professor, deixa-se de discutir a corrupção “no” Estado e “no” sistema democrático para se debater a corrupção “do” Estado e “do” sistema democrático.

Em outras palavras, parte da opinião pública passa a considerar as instituições políticas como “inimigas” e começa a defender o fim do sistema, e não a sua reforma. O risco é o alinhamento do País em uma perspectiva autoritária. “No Brasil, esse tema é observado sempre em momentos de mudança do sistema político. Uma sociedade mais plural, mais dinâmica, mais mobilizada, serve como contraponto a esse discurso assertório. A defesa da democracia passa pelo enfrentamento da corrupção no âmbito das instituições, e não o esvaziamento das reformas na agenda política.”

E completa: “A corrupção é compreendida pela direita como um processo de degeneração política. Mas a direita não tolera pluralismo. Este é um discurso antidemocrático por definição porque pede o enfrentamento com mudanças bruscas de regime, e não com o fortalecimento de instituições democráticas.”

Sobre a articulação do pensamento conservador na opinião pública, o professor de ciência política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) João Feres Júnior apresentou as hipóteses principais de um trabalho ainda em andamento a partir do discurso anticotas raciais pelas universidades públicas.

Feres analisou os argumentos apresentados, segundo ele de forma coordenada e articulada, por alguns expoentes do pensamento conservador que se colocaram contra a instituição das cotas por meio de artigos na imprensa e livros-manifesto. O principal exemplo foi a publicação de Divisões Perigosas – Políticas Raciais no Brasil, livro com 50 artigos contrários à política de cotas que teve como principal fiador o geógrafo Demétrio Magnoli, campeão de publicações a respeito do tema na mídia.

Feres selecionou os argumentos usados por Magnoli e companhia e identificou o que economista alemão Albert Hirschman considerou como pilares da intransigência em um debate: as teses do efeito perverso (“vamos perder direitos”, “vamos produzir mais discriminação”), da futilidade (“as cotas são vulneráveis a fraudes”, “o sistema fracassou em outros lugares”) e da ameaça (“ao tentar ganhar, vamos perder direitos”).

A alegada preocupação com a “radicalização” da sociedade, a imposição de uma “nação bicolor”, com a “oficialização do racismo”, a “proeminência da raça” em detrimento das classes sociais e a ofensa à nossa suposta “tradição da mestiçagem” encontrada nos artigos possuíam, segundo o estudioso, a estrutura dos argumentos observados por Hirschman nos discursos em reação à revolução francesa, ao sufrágio universal e ao Estado de Bem-Estar Social.

Ou seja: em todos esses casos também soou o alarde de quem estava na contramão da história gritando que as mudanças não funcionariam. “Chama a atenção o caráter naturalista das críticas às cotas, sem qualquer embasamento empírico”, diz o professor.

A conclusão preliminar do estudo é que, como em outros momentos históricos, os reacionários se veem acuados diante do espírito pró-mudança de seu tempo. “A estratégia é se dizer a favor da mudanças, mas alertar que ela produzirá o exato oposto do que se quer, e que os ganhos que elas por ventura venham a produzir não compensam as perdas que acarretarão”.

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