Cotas Raciais: um direito legítimo

José Rogério Beier em seu blog Hum Historiador

Caros amigos e companheiros leitores deste blog, devo dizer que fui vítima de uma cilada provocada por mim mesmo, pois possesso por uma curiosidade mórbida, caí na besteira de clicar sobre uma discussão que estava sendo realizada no fórum do site Observador Político. A discussão, intitulada “Cotas Raciais – Aspectos Polêmicos”, foi criada por uma procuradora do Distrito Federal chamada Roberta Fragoso Kaufmann e, como veremos adiante, está repleta de equívocos, más intenções e, nos comentários, preconceitos e, até mesmo, racismo.
Digo que foi uma cilada, pois de antemão já sabia que não podia esperar boa coisa de um fórum lançado pelo FHC e, portanto, ninho tucano por excelência. Nem tanto pelo fato de ter sido lançado pelo ex-presidente, mas muito mais por conta dos valores defendidos pelos frequentadores que o dito site atrai. Enfim, cilada à parte, acabei lendo o texto da já mencionada procuradora e fiquei horrorizado com o que vi por ali. Em primeiro lugar fiquei estupefato com o texto em si, com erros grosseiros (nome do presidente dos EUA) e generalizações/distorções históricas que buscam servir de base argumentativa para justificar ideias preconceituosas contrárias às ações afirmativas das assim chamadas “cotas raciais”.
Pelo que pude observar, as principais fontes utilizadas por Kaufmann na construção da argumentação por trás de sua entrevista concedida ao jornalCarta Forense (2007), foram o sociólogo e geógrafo Demétrio Magnoli, com seu livro Uma Gota de Sangue (2009) e O Grande Jogo (2006); e o jornalista Ali Kamel, autor, dentre outros livros, de Não Somos Racistas (2006). Além deles, a própria Roberta Kaufmann é autora de um livro sobre o assunto intitulado Ações Afirmativas à Brasileira: Necessidade ou Mito?
Em meu post vou focar mais no texto da entrevista de Kaufmann do que em criticar os textos de Magnoli e Kamel, base da argumentação da autora. Se alguém quiser referências de críticas aos textos de Demétrio Magnoli e de Ali Kamel, recomendo o excelente artigo do professor de Antropologia da USPKabenguele Munanga, que desmascara as intenções de Demétrio Magnoli e, para o diretor de jornalismo da Rede Globo, sugiro a crítica realizada por Mara Onijá em “Ali Kamel e a farsa de Não Somos Racistas”.
Para não ficar muito pessoal, quanto à autora, prefiro apenas postar a informação com a qual ela se apresentou no fórum de discussão, isto é, seu nome, profissão e titulações. Roberta Fragoso Kaufmann é Procuradora do Distrito Federal; Mestre em Direito do Estado pela Universidade de Brasília; MBA em Direito pela FGV; Professora de Direito Constitucional e Administrativo na Escola da Magistratura do Distrito Federal e na Escola do Ministério Público.
A entrevista sobre a qual vamos nos debruçar foi concedida ao jornal Carta Forense em meados de 2007, e toda ela tratou do assunto das cotas raciais. Ao ler a entrevista, devemos levar em consideração que a Universidade de Brasília, local onde Kaufmann se titulou mestre em Direito do Estado, adotou o sistema de cotas reservando 20% de suas vagas para negros no ano de 2003(Resolução CEPE N.38/2003).
Logo de princípio, depois de definir o que são ações afirmativas, quando perguntada pela entrevistadora se essas ações não promoveriam um desequilíbrio do princípio da igualdade, Kaufmann afirma que para isso ocorrer, vai depender do critério que se estabeleça para a ação afirmativa. Para ela, a cor, no Brasil, não é critério suficiente para validar a concessão de ações afirmativas. Abaixo destaco o trecho da entrevista onde Kaufmann faz esta afirmação:
“(…) no Brasil a cor, isoladamente, não funciona como um critério constitucionalmente válido para a concessão de ações afirmativas. Isto porque a cor da pele, aqui, jamais funcionou como barreira intransponível à ascensão social, de modo que diversos foram os negros que conseguiram superar o preconceito e a discriminação e atingiram cargos de prestígio, mesmo antes da abolição da escravatura. No Brasil, o problema da integração dos negros à sociedade decorre da perversa correlação entre pobreza e negritude, pela dificuldade inerente de romper o círculo de pobreza.”
Percebam que, além do absurdo de falar que a cor da pele jamais funcionou como barreira à ascensão social no Brasil (utilizando a estratégia de fazer de algumas exceções, regra), ela tem a coragem de sustentar esta afirmação mesmo para o período da escravatura. Acho desnecessário que eu, um historiador, tenha que dizer a uma mestre em Direito que embora não houvesse uma lei escrita que impedisse um negro de ocupar um alto cargo público, haviam outras restrições que tornavam este acesso praticamente impossível. A própria condição de escravo da maioria dos negros era uma delas. Aqueles que não eram escravos, em sua esmagadora maioria, não eram alfabetizados e, portanto, estavam longe do funcionalismo público. Nas raras exceções em que um negro tinha, de fato, condições de disputar um cargo com um branco, ele só seria preferido se sua superioridade fosse incontestável. Deveria ser um mestre em seu ofício.
Em seguida, para não se limitar a um equívoco grosseiro, Kaufmann percebe a relação entre pobreza e negritude, mas entende que a impossibilidade de os negros romperem esse círculo de pobreza deve-se a uma “dificuldade inerente”. Bem explicado isso, né? O que seria essa dificuldade inerente? O racismo, talvez? Esse sim ajuda a explicar a diferença de acesso à educação superior entre brancos e negros e, como ela bem sabe, quem tem diploma de universidade costuma ganhar mais do que quem não tem.
Depois das primeiras perguntas, quando questionada se o modelo de cotas implementado no Brasil é o ideal, Kaufmann se decide então a falar de História dos Estados Unidos e de História do Brasil Colonial para explicar porque o modelo brasileiro não é o ideal. Como era de se imaginar, a procuradora trata de temas que possuem uma discussão bastante rica, produzida por especialistas da área da escravidão tanto no Brasil quanto nos EUA, sem nenhum cuidado e/ou profundidade. Faz uma breve síntese, escolhe apenas ideias de autores que lhe interessa, moldando tudo à sua argumentação para concluir que o modelo brasileiro é insuficiente. Para Kaufmann, este modelo seria insuficiente, pois é baseado na cor da pele e na auto-classificação (diferentemente dos EUA, que é no sangue), e por isso não bastaria no Brasil, já que a mestiçagem é generalizada e todos poderiam se autodeclarar negros. Em sua resposta, diz:
“(…) No Brasil, a definição da categoria racial não utiliza o critério da ancestralidade, mas uma conjunção de fatores, como aparência física e status social. A impressão de uma linha divisória entre branco e negros, no Brasil, fez com que sempre se utilizasse do sistema da auto-classificação, e mesmo assim apenas para fins censitários, o que, decerto, pode gerar imprecisão, ou má-fé de indivíduos. Apenas a título de exemplo sobre a impressão racial no Brasil, destaque-se que em 1976 foi realizada a pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD. À pergunta: Qual é a cor do(a) senhor(a)?, identificaram-se espantosas 135 cores no país!”
Oras, de cara podemos depreender que o próprio fato de os entrevistados da pesquisa do PNAD terem ajudado a identificar a existência de 135 cores de pele no país, denota a existência do racismo que, entre o branco e o negro, consegue enxergar 133 tonalidades de moreno para não se determinar negro.
Como diz o professor Kabenguele Munanga, se Kaufmann tivesse lido o livro de Eneida de Almeida dos Reis, intitulado MULATO: negro-não-negro e/ou branco-não-branco, publicado pela Editora Altara, na Coleção Identidades, São Paulo, em 2002, quem sabe entenderia um pouco sobre a ambivalência genética do mestiço e as razões que podem levar um mestiço a se determinar branco em uma situação e negro em outra, além da presumida má fé, que ela se apressou a concluir. Mas a procuradora Roberta Kaufmann acabou seguindo o mesmo caminho mal intencionado de Demétrio Magnoli, que utilizou o argumento da ambivalência genética para invalidar o sistema de cotas aos afrodescendentes alegando que para este se estabelecer, em um país tão miscigenado, seria necessário a implementação de um “tribunal racial” para decidir se os candidatos são ou não negros.
Abaixo destaco três parágrafos do texto do professor Munanga, retirado do seu já mencionado artigo-resposta a Demétrio Magnoli, para jogar um pouco de luz sobre a questão da ambivalência genética do mestiço e rebater a nobre procuradora do Distrito Federal.
“Para entender porque essas pessoas mestiças foram consideradas brancas, apesar de terem declarado sua afrodescendência, é preciso voltar ao clássico “Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais”, de Oracy Nogueira (São Paulo: T.A. Queiroz, 1985). (…)  Ensina Nogueira que a classificação racial brasileira é de marca ou de aparência, contrariamente à classificação anglo-saxônica que é de origem e se baseia na “pureza” do sangue. Do ponto de vista norteamericano, todos os brasileiros seriam, de acordo com as pesquisas do geneticista Sergio Danilo Pena, considerados negros ou ameríndios, pois todos possuem, em porcentagens variadas, marcadores genéticos africanos e ameríndios, além de europeus, sem dúvida. Quando essas pessoas fenotipicamente brancas e geneticamente mestiças se consideram ou são consideradas brancas no decorrer de suas vidas e assumem, repentinamente, a identidade afrodescendente para se beneficiar da política das cotas raciais, as suspeitas de fraude podem surgir. Creio que foi o que aconteceu com os alunos cujas matrículas foram canceladas na UFSM e na UFSCAR. Se não houver essa vigilância mínima, seria melhor não implementar a política de cotas raciais, porque qualquer brasileiro pode se declarar afrodescendente, partindo do pressuposto de que a África é o berço da humanidade.. 
Lembremo-nos de que no início dos debates sobre as cotas colocava-se a dificuldade de definir quem é negro no Brasil por causa da mestiçagem.Falsa dificuldade, porque a própria existência da discriminação racial antinegro é prova de que não é impossível identificá-lo. Senão, o policial de Guarulhos não teria assassinado o jovem dentista identificado como negro pelo cidadão branco assaltado, e os zeladores de todos os prédios do Brasil não teriam facilidade para orientar os visitantes negros a usar os elevadores de serviço. Por sua vez, as raras mulheres negras moradoras dos bairros de classe média não seriam constantemente convidadas pelas mulheres brancas, quando se encontram nos elevadores, para trabalhar como domésticas em suas casas. Existem casos duvidosos, como o dos alunos em questão, que mereceriam uma atenção desdobrada para não se cometer erros humanos, mas não houve dúvidas sobre a identidade da maioria dos estudantes negros e mestiços que ingressaram na universidade através das cotas. (…) 
(…) De acordo com as conclusões assinaladas no livro de Eneida de Almeida dos Reis, muitos mestiços têm dificuldades para construir sua identidade por causa da ambivalência (Mulato: negro-não-negro e/ou branco-não-branco) , dificuldades que eles teriam superado se tivessem política e ideologicamente assumido uma de suas heranças, ou seja, a sua negritude, que é o ponto nevrálgico de seu sofrimento psicológico. Se (…) tivesse lido este livro e refletido serenamente sobre suas conclusões, teria percebido que não alimento nenhum projeto ou plano de ação para suprimir a mestiçagem no Brasil. Isto só pode ser chamado de masturbação ideológica, e não de análise sociológica, nem geográfica! Como seria possível suprimir a mestiçagem, que é um fato fundamental da história da humanidade, desafiando as leis da genética e a vontade dos homens e das mulheres que sempre terão intercursos interraciais? Nem o autor do ensaio sobre as desigualdades das raças humanas, Arthur de Gobineau, chegou a acreditar nessa possibilidade. Se as leis segregacionistas do Sistema Jim Crow no Sul dos Estados Unidos e do Apartheid na África do Sul não conseguiram fazê-lo, os ícones da racialização oficial do Brasil, entre os quais nosso colega me situa, terão esse poder mágico e milagroso que ele lhes atribui? 
Bom, os pontos principais da questão foram colocados e está bastante claro. O modelo de cotas no Brasil não está equivocado tal como defendem Demétrio – Kamel – Kaufmann, na verdade, como bem disse o prof. Munanga, ele tem que ser mesmo baseado na cor, pois esta é a maneira brasileira como um indivíduo se identifica etnicamente. Para fins de cotas, a autoclassificação deve continuar valendo e, para evitar as fraudes, haverá fiscalização que não tem nada de tribunais raciais. Se uma pessoa se sentir lesada em seu direito, sempre poderá recorrer à justiça, que deverá determinar se ela faz jus àquele direito ou não.
Na parte final da entrevista, como não concorda com a decisão vigente de cotas para negros, quando questionada sobre qual seria a medida ideal para o Brasil, Kaufmann passa a utilizar como fonte de suas ideias o diretor de jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel, fazendo uma ligeira adaptação ao discurso defendido no livro Não Somos Racistas. Para Kaufmann, resumidamente, a medida ideal para o Brasil seria “a adoção de ações afirmativas à brasileira, baseadas em nosso contexto histórico, econômico e social, em que a pobreza seja o critério objetivo levado em consideração, de modo que a política se destine aos comprovadamente pobres”. A diferença para o discurso de Ali Kamel, é que este não apoia a ideia de ações afirmativas nem mesmo para os pobres, mas esperar que os investimentos governamentais em educação surtam efeito e resolvam o problema do acesso de pobres às universidades públicas. Nesse sentido, a proposta de Kaufmann representa um avanço, pois relativizou a ideia de Kamel e se posicionou favoravelmente à adoção de ações afirmativas, não aos negros em específico, mas aos pobres, em geral.
Em minha opinião uma coisa não exclui outra. Podemos ter cotas para pobres oriundos de escolas públicas e, simultaneamente, cotas exclusivas para negros com o objetivo de reduzir a grande defasagem do número de negros em universidades federais e estaduais espalhadas pelo país. Se negros e mestiços são esmagadora maioria na sociedade, deveriam também sê-lo nas universidades, o que atualmente NÃO SÃO e digo por experiência própria.
A questão das cotas a negros são justamente essa, isto é, como resolver a pequena presença de negros nas universidades públicas sem ter que esperar o longo prazo para que o “maciço investimento” em educação básica surta efeito, se é que algum dia irão realmente fazer com que as escolas de ensino fundamental e médio estaduais e municipais coloquem a maioria de seus estudantes numa universidade pública.
Quanto aos comentários, serei bastante breve, pois  a coisa degringola para ignorância, preconceito e até mesmo para o racismo quando é levantado que a própria autora da discussão, Roberta Kaufmann, havia mencionado em outro texto que o Ministro Joaquim Barbosa era um “exemplo de negro que deu certo”. Daí se pode tirar o nível dos comentários apresentados na discussão.
Um indivíduo, que não teve coragem de se identificar e assinou com o nome deBoina Verde (imagina a porcaria), fala que há uma “politização das pseudo injustiças sociais” e que entende as cotas como uma luta de alguns “por vantagens para os afrodescendentes”; outro “observador político” fala que os que lutam por cotas utilizam conceitos ultrapassado como “pretexto para privilégios”; um terceiro comentarista fala que é favorável a uma cota que o torne senador e contrário a todas as outras cotas; por fim, um quarto comentarista questiona a validade de cotas para afrodescendentes por estas favorecerem apenas uma minoria em detrimento de outras, que também deveriam ter direito a cotas (homossexuais, deficientes, prostitutas, etc.) e que, pensando analogamente, ele deveria ter o direito de pleitear uma vaga por cotas em universidades estadunidenses por ser de origem latina (portanto minoria), mas que lá ele não tem esse direito. Enfim, praticamente só tolices e ideias da profundidade de uma colher de chá.
O tal do Boina Verde, acha que as injustiças sociais sofridas pelos afro-descendentes no decorrer da história do país não existiram, foram inventadas. Desnecessário responder uma afirmação dessas. Para este mesmo indivíduo e para o segundo comentarista, o sistema de cotas trata-se de vantagens ou privilégios que uns “espertinhos de má fé” estão tentando arrancar dos “brancos”, estes sim os verdadeiros sofredores que se matam de estudar para passar em uma universidade pública. Já o terceiro comentarista, por trás da ironia de dizer que só é favorável a cota de senador para ele, não só camufla a ideia de que cota é uma luta por privilégio, mas também a ideia de que só não é favorável porque ele próprio não se beneficia. Tal ideia, embora melhor camuflada, também se encontra na argumentação do quarto e último “observador político”. Este, ao levantar o que poderia ser um argumento discutível, o da desigualdade de direitos entre minorias, coloca sua argumentação a perder quando faz uma analogia onde se inclui como exemplo, deixando claro que sua oposição ao sistema de cotas é muito mais porque ele é inelegível, do que por qualquer outra razão.
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