À mesa com Valor com o ator Wagner Moura


O ator Wagner Moura já combateu o crime na pele do Capitão Nascimento e enfrentou o fantasma do pai em "Hamlet", mas acaba de ser nocauteado por uma gripe. Das brabas. É com os olhos lacrimejando que abre a porta do quarto do hotel onde está hospedado em São Paulo. Abaixa o volume da televisão e aumenta o da voz, um tanto rouca. "Melhor colocar uma camisa de botão", diz, ao ver a fotógrafa, numa mistura sutil de sotaques baiano e carioca.
Moura está na cidade por causa de "A Busca", filme de Luciano Moura, em que vive Theo, médico que cai na estrada em busca do filho adolescente que sumiu. Só neste ano, o ator, que aos 36 anos é um dos mais cobiçados do cinema nacional, poderá ser visto em mais três longas: "Praia do Futuro", de Karim Aïnouz; "Serra Pelada", de Heitor Dhalia; e "Elysium", do sul-africano Neill Blomkamp. Bastante, não? Pois tem mais. Moura se prepara para protagonizar "Fellini Black and White", de Henry Bromell, que será rodado nos Estados Unidos.
A porta que separa o dormitório da sala se abre e o ator volta com uma camisa marrom, quase do mesmo tom da cortina. O figurino bem mais formal que a camiseta do início é simpaticamente quebrado pelo detalhe dos pés, que dispensam os sapatos e descansam em meias. Já sentados à mesa, ele conta, entre acessos de tosse, que foi um adolescente "esquisito". Seu apelido na escola era Ovni, andava sozinho e não se sentia parte da turma. Esse "cara meio estranho" já sabia que queria fazer teatro, mas vivia imerso em dúvidas, não sabia quem era, tampouco para onde ia.
Certo dia foi assistir a uma apresentação de "Zumbi dos Palmares" - encenada pelo Bando de Teatro Olodum - e seus olhos grudaram em um "um menino no palco, que ficava dançando lá no fundo". "Ele tinha um axé, uma luz. Pirei nele." Ao fim do espetáculo, Moura fez questão de ir até o camarim cumprimentar aquele talento. "Falei assim: 'Ei, cara, quero ser seu amigo'." O tal "cara" era o ator Lázaro Ramos.
Amizade selada, os conterrâneos passaram a se falar com frequência. Era comum Ramos consultá-lo antes de aceitar novos convites de trabalho. Moura tem apenas dois anos a mais que o amigo, o suficiente para botar pancas de irmão mais velho. "Lázaro brinca que sou de outra geração", diz, com uma sonora risada que só não é mais comprida porque engolida pela tosse. Insistente. Como acalmar a danada? Levanta-se, vai até o frigobar e pega uma garrafa de água. Aproveitamos para pedir um "brunch" por telefone: pães, frutas, frios, suco de laranja, bolo e um item que não faz parte do pacote: chá de gengibre com mel e limão para ajudá-lo a enfrentar a gripe e dar conta da agenda lotada.
Enquanto gira a tampinha da garrafa de água, relembra os papéis inusitados que encarou no início de carreira. Já interpretou um "coração" - aparecia em cena metido numa roupa de espuma bem grande e fofa. Numa outra ocasião coube a ele o desafio de interpretar uma "brisa". Compenetrado, Moura surgia no fundo da plateia, descia correndo a escadaria, enquanto chacoalhava fitas coloridas que trazia nas mãos. Seus fiéis amigos - Lázaro Ramos e Vladimir Brichta - batiam ponto na plateia e se acabavam de tanto rir. "Fui altamente sacaneado por Lázaro e Vlad. Eles iam assistir só pra isso."
Sua estreia no cinema foi em "Sabor da Paixão", coprodução Estados Unidos/Brasil estrelada por Penélope Cruz e Murilo Benício. Ramos atuou ao seu lado. Fizeram o teste juntos e em inglês, língua do longa e idioma do qual Ramos sabia lhufas. Nada que uma aula expressa - ali mesmo nos bastidores e ministrada por Moura - não desse conta. Uma semana depois, Ramos ligou. "Nós passamos no teste", comunicou em pânico. "Que ótimo", comemorou Moura. "Ótimo? Ótimo??? Eles mandaram o roteiro e tem fala pra cacete. Tudo em inglês", desesperou-se o outro.
Ensaiaram exaustivamente até ter o texto na ponta da língua e foram se encontrar com Fina Torres, diretora do filme. Antes que eles pudessem mostrar como estavam afiados na língua do Tio Sam, Fina encasquetou que modificaria os diálogos. Como assim? Ramos arregalou os olhos em estado de choque. Correram para o banheiro e Moura pôde ajudar o amigo a decorar o novo texto em inglês. "Lázaro é f..., um ator genial. Até falando tudo errado ele é bom."
Acatando ordens, chegavam pontualmente às 5 horas, passavam o dia metidos em figurinos aguardando para entrar em cena. Só tarde da noite descobriam que a espera tinha sido em vão. "Ninguém dava explicações." A dupla era chamada aos berros por "Ralph and Max!" - nome de seus personagens. "Saí desse filme achando que não queria mais fazer cinema. As pessoas maltratavam muito a gente."
Moura lembra-se de uma cena embaraçosa. Era hora da refeição e todas as mesas estavam ocupadas. Aos vira-latas "Ralph e Max" restava comer em pé, equilibrando pratos e cansaço. Já Penélope Cruz reinava sozinha em uma mesa, ninguém se atrevia a sentar ao seu lado. "Eu vou", anunciou Lázaro Ramos todo prosa. "Não faça isso, não sente lá", disse Moura, numa fala mansa. O amigo deu de ombros e anunciou todo confiante: "Penélope é nossa colega de trabalho". Fazer o quê? A Wagner Moura restou assistir à cena de longe. Foi Ramos sentar-se para a estrela espanhola levantar-se na mesma hora. "Eu perturbei muito ele com essa história."
Hoje Moura é tratado a pão de ló. Cadeira e mesa não faltam para o ator nos sets de filmagem, tampouco aqui no quarto. Já a comida que pedimos há algum tempo, neca. O assessor de Moura liga à recepção para checar o motivo da demora. Enquanto as guloseimas não vêm, Moura nos serve mais uma porção de prosa.

Ana Paula Paiva/ValorMoura: imersão total para fazer papéis como os do Capitão Nascimento de “Tropa de Elite” ou Naldinho de “Cidade Baixa”
Logo o ator foi convidado para participar da peça "A Máquina", dirigida por João Falcão. Assim que pôde, sugeriu o nome de Ramos para completar o elenco. O amigo recusou. "Falei: 'Velho, puta coisa maneira de se fazer'. Ele chorava, dizia que estava comprometido com o Bando de Teatro Olodum. Eu dizia: 'Pô, bicho, passei um mês convencendo o diretor a te chamar e agora você vai fazer essa desfeita?'" O amigo acabou por acatar seu conselho.
A peça rodou o Brasil e revelou o que é que os baianos têm. O trio Wagner Moura, Lázaro Ramos e Vladimir Brichta interpretava o mesmo papel. Eles eram Antônio, morador de Nordestina, uma cidade minúscula, perdida no meio do nada, da qual se dizia: "Eita lugarzinho sem futuro, longe que só a gota". A certa altura da peça Antônio prometia a Karina, sua amada: "Você vai ver. Um dia Nordestina vai constar no globo terrestre".
Nordestina continua sendo o que sempre foi, uma cidade fictícia que nunca fará parte da geografia formal. Já Rodelas, a cidade onde Moura nasceu e passou a infância, era real, mas não existe mais. Situada no sertão baiano, às margens do Rio São Francisco, Rodelas foi inundada para dar lugar à hidrelétrica de Itaparica, nos anos 1980.
A cidade sumiu, não seu filho ilustre, que tem fincado os pés em solos cada vez mais distantes. Como diria Romão, seu personagem no filme "O Caminho das Nuves", de Vicente Amorim, que cai na estrada em busca de uma vida melhor: "Tenho medo de chão não... Seguinte é esse seu moço, sou um homem obstinado".
Em agosto Wagner Moura poderá ser visto em "Elysium", filme de ficção científica do sul-africano Neill Blomkamp, o mesmo de "Distrito 9". O convite surgiu depois que o diretor viu o brasileiro na pele do Capitão Nascimento em "Tropa de Elite".
A história se passa em 2159. O mundo é dividido entre dois grupos: o primeiro, riquíssimo, mora na estação espacial Elysium, enquanto o segundo, pobre, vive na Terra, repleta de pessoas e em grande decadência. Por um lado, a secretária do governo Rhodes (Jodie Foster) faz de tudo para preservar o estilo de vida luxuoso de Elysium; por outro, um pobre cidadão da Terra (Matt Damon) tenta um plano ousado para trazer de volta a igualdade entre as pessoas.
Uma cláusula no contrato impede que o ator revele detalhes sobre o filme, mas ele adianta que contracena "basicamente com Matt Damon" - para quem só tem elogios. "Matt é um cara bem família, casado com uma argentina e com um monte de filhos, que nem eu."
Interpretar em inglês exigiu esforço extra do ator, que, como os outros estrangeiros do elenco, contou com a ajuda de um instrutor especial, que era acionado para evitar que a pronúncia comprometesse a compreensão do que era dito - o que não foi o caso do brasileiro.
"Meu inglês é da Bahia, nunca morei fora do país. É uma língua com a qual não tenho uma relação tão íntima. Meu sotaque nunca vai acabar, isso é fato, serei sempre um estrangeiro em filme americano."
Sou da opinião de que o artista deve se abrir para a troca, principalmente em artes coletivas, caso do cinema e do teatro
Mas não é só o idioma que revela que os atores são de nacionalidades diversas. Na primeira leitura do roteiro, seus colegas de elenco diziam as falas sem muita emoção. Já Moura não economizava esforços: "Fui com tudo, cheio de vontade. Eu já tinha estudado muito esse roteiro, não ia ficar fingindo que estava lendo".
Essa atitude comedida dos americanos foi até o último minuto antes de rodar, já no set de filmagem, com seus figurinos e maquiagem. Era apenas após o luz, câmera, ação, que todos interpretavam para valer. "Eles se poupam mais nos ensaios, é da cultura deles."
Moura costuma se entregar ao processo "sem puxar o freio de mão", como gosta de dizer, mesmo quando isso exige um bocado. Para compor o Capitão Nascimento do filme "Tropa de Elite", de José Padilha, o ator passou por um treinamento espartano durante duas semanas com o Batalhão de Operações Policiais Especiais, o Bope.
"Eles não entendiam muito dessa coisa de cinema. Foram chamados para treinar uma galera, para que se comportassem como eles. E assim foi. A gente marchava o dia inteiro, comia na lama, atirava, levava esporro, grito, empurrão. Eu pensava: que loucura, vou-me embora daqui, sou um ator. Sentia dores no corpo, era horrível. Mas aquilo deu um tom para o filme. O 'Tropa' vem da tradição dos filmes políticos, como os do Costa-Gravas, que pedem um ingrediente de realidade muito grande. Aquilo foi fundamental."

Ana Paula Paiva/ValorO “personagem é preenchido com as minhas emoções, com o jeito que eu vejo a vida”, conta o ator
Treinar com o Bope foi mamão com açúcar se comparado ao que o ator passou com Fátima Toledo. A preparadora de elenco costuma dizer: "Eu destruo atores. É assim: ou ele se despe ou desiste". Moura se despe. Ele já está habituado ao método visceral da moça, com quem trabalhou em três longas. "Ela usa muito suas emoções pessoais e de um jeito muito intenso."
Fátima até instigou a cizânia entre Moura e Ramos para que eles vivessem Naldinho e Deco, dois amigos que passam a disputar a mesma mulher em "Cidade Baixa", filme de Sérgio Machado. A dupla nunca havia trocado farpas, harmonia que Fátima considerava "insuportável".
Tanto fez que um dia, já exaustos, Ramos bateu em Moura, que revidou. "A gente se abraçava e chorava. Eu acho que não precisaria disso, mas ela queria o conflito entre eles, era o método e a gente se entregou completamente. Se é assim o processo, eu topo. Acho uma perda você se fechar para algo que pode dar a diferença no seu trabalho."
Fátima também foi a responsável por preparar o elenco do ainda inédito "Praia do Futuro", de Karim Aïnouz, rodado no Brasil e na Alemanha. No longa Moura é um salva-vidas considerado herói por todos os que o cercam. Só que essa imagem de infalível o aprisiona, é como se estivesse fadado a corresponder às expectativas alheias. Parte, então, para a Alemanha sem avisar ninguém.
"Tão bonito, uma premissa linda. Ele quebra a imagem do herói para se humanizar." Além do desafio do método de Fátima, o ator teve que aprender a falar "a língua do demônio, né? Mefisto fala alemão, uma língua muito dura, você tem que pronunciar ca-da pa-la-vra", diz escandindo as sílabas e na sequência solta uma frase na língua de Goethe. O assessor, que domina o idioma, faz um elogio à sua pronúncia.
E, como se não bastasse o inglês e o alemão, Moura agora tem estudado italiano. Vai encarnar o cineasta Federico Fellini em "Fellini Black and White", de Henry Bromell. A trama se passa em Los Angeles e segue o diretor em sua primeira visita aos Estados Unidos, em 1958. Fellini, que deveria participar da cerimônia do Oscar, some por 48 horas e quase perde a festa, na qual ganhou a estatueta de melhor filme estrangeiro com "Noites de Cabíria." O roteiro imagina o que teria se passado durante as horas em que o diretor ficou desaparecido.
"É uma comédia, uma loucura total. O nosso Fellini não é exatamente o de verdade. É inventado, doido, diferente." O filme será todo falado em inglês, fora um ou outro diálogo na língua do diretor italiano. O desafio de Moura é falar inglês com sotaque dos entregadores de pizza do Brooklyn. Seu temor é cair no estereótipo, fazer algo no estilo de Roberto Benigni. E subitamente imita com perfeição o sotaque do ator e diretor do "A Vida É Bela".
Wagner diz que ainda está procurando a melhor maneira de compor seu papel. Para tal, tem visto todos os filmes de Fellini, seu cineasta favorito, e, para encontrar o sotaque, os filmes em que Marcello Mastroianni atuou em inglês.
O estudo prévio e profundo sobre os personagens é básico, ele explica, mas não pode se tornar camisa de força. É necessária uma abertura para as interferências do diretor, dos colegas com quem contracena ou mesmo de um vento que se intrometa no set. "Não dá para ficar fixo naquilo que você imaginou. Sou da opinião de que o artista deve se abrir para a troca, principalmente em artes coletivas, caso do cinema e do teatro. Você não deve tentar exercer um controle exagerado sobre tudo."
O ator sabe disso, não seu personagem de "A Busca". Na trama, que estreou em meados de março, ele é Theo, um médico que precisa ter tudo sob seu comando. Só que sua família passa a agir à revelia do script que ele traçou: a mulher pede a separação, o filho recusa uma proposta de estudos no exterior e, no dia em que completaria 15 anos, foge de casa. Theo cai na estrada seguindo pistas do filho e na busca vai se transformando.
Moura é pai de três meninos - Bem, Salvador e José - e sente arrepio na espinha só de imaginar perder um deles. O máximo que penou foi quando umas das crias sumiu de sua vista por míseros dez segundos na praia - "uma eternidade".
"Eu não sei o que faria se meu filho desaparecesse, gosto nem de pensar. Então tem imaginação, claro, mas de uma forma que aquele personagem é preenchido com as minhas emoções, com o jeito que eu vejo a vida."
Para atuar, a imaginação é alimento, mas para encher estômago ainda vazio ao meio-dia o recurso não tem lá muita serventia. Eis que surge a camareira, depois de rodar por uma hora com nosso "brunch" por quartos errados. A comida é farta, mas o tempo, escasso. O assessor avisa que teremos de ser ligeiros, pois o pessoal da próxima entrevista já aguarda o ator no saguão do hotel.
"Gente, vamos comer", convida Moura. "Pegue um prato, menina." Enquanto enche a xícara de chá, conta que gosta de ser produtor, experiência que teve no "Tropa de Elite 2" e no ainda inédito "Praia do Futuro". E ultimamente anda desejoso de partir para a direção. "Acho que os atores têm uma visão privilegiada do processo de filmagem, olham de dentro para fora. Sei exatamente o que cada departamento faz, do continuista ao eletricista. Essas coisas fazem o ator ter uma relação mais harmônica com aquele ambiente. E tem dado certo, vide Selton Mello, Marco Ricca e Ben Affleck."
Outro projeto, diz enquanto pesca um pão da cesta, é viver os gêmeos de "Dois Irmãos", microssérie baseada no livro de Milton Hatoum que será dirigida por Luiz Fernando Carvalho. "Os personagens são lindos. Adoro esse livro, é o 'Hamlet' de Hatoum", diz, animado.
Enquanto come um pedaço de queijo, o ator conta sobre sua outra faceta. No ano passado, num show tributo ao Legião Urbana, Moura assumiu o lugar de Renato Russo, morto em 1996. Começou cantando "Tempo Perdido", música que ele já havia interpretado em dois filmes, "O Homem do Futuro" e "VIPs." E batucando de leve na quina da mesa, canta baixinho: "Então me abraça forte/ E diz mais uma vez/ Que já estamos/ Distantes de tudo/ Temos nosso próprio tempo..." O assessor está em pé ao lado da porta. Não "temos todo o tempo do mundo". Depois de um brinde de suco de laranja, saímos de cena.

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