Existe um direito de odiar?

José Rodrigo Rodrigues no Terra Magazine 



A democracia é difícil
OBrasil está se transformando em uma sociedade de classe média com a ascensão da classe C, mudanças na distribuição de renda e aumento do consumo. A história já é conhecida e tem sido analisada por muitos jornalistas e estudiosos.

Mas há um aspecto menos comentado das mudanças experimentadas por nosso país neste começo de século. Cada dia mais, podemos debater publicamente todo e qualquer tema. Não há assuntos proibidos ou espaços imunes à esfera pública.

O Brasil está perdendo, pouco a pouco, as características de uma sociedade autoritária e hierárquica em que valem mais os interesses e desejos arbitrários de quem ocupa posições de poder na esfera pública e na esfera privada.

Como consequência, é necessário agora justificar publicamente valores, formas de vida e atitudes que pretendam ser protegidas ou promovidas pelas leis.

Ora, isso significa também que todas as posições sociais, atitudes e visões de mundo podem ser questionadas publicamente. Em uma democracia, todos os valores podem ser postos em xeque constantemente. Inclusive os nossos.

É fácil ver como este é um regime existencialmente muito exigente. Seu poder corrosivo, a necessidade de se justificar perante todos, relativiza toda moral substantiva, toda experiência individual ou coletiva, todo padrão de existência que se pretenda universal.

Se existem valores universais em uma democracia, eles se restringem à proteção de direitos fundamentais, capazes de garantir que o debate público ocorra de forma livre e igualitária. Tudo mais está em jogo e em risco.


A resistência ao debate
Não é estranho, portanto, que a democracia enfrente muitas resistências, especialmente por parte daqueles que pretendem levar sua vida com base em tradições, valores ou verdades que consideram universais e inquestionáveis. Ou por parte daqueles que simplesmente gostariam de ficar fora do debate público.

A democracia exige que essas pessoas promovam seus valores e defendam sua imunidade ao debate no contexto do debate público. Ou seja, este regime tende a excluir de seu âmbito radicais libertários, religiosos e comunitaristas.

Não é por outra razão que, periodicamente, vemos surgir movimentos de resistência à democracia. A despeito da falta de estudos sobre o tema, acredito que há muitos tipos humanos, muitas formas de estruturação da psique, para os quais o regime democrático é praticamente insuportável.

Uma das maneiras mais comuns de manifestar o incômodo com a democracia é instituir alguma “autoridade”, alguma instância superior, supostamente capaz de pôr determinados valores fora do debate público, protegendo-os e preservando-os do feroz vozerio democrático.

Esta autoridade pode ser religiosa, alguém que diga o que é certo ou errado no campo moral e da ética. Também pode ser uma autoridade civil, capaz de diferenciar os “criminosos” dos “pais e mães de família”, ou seja, os “bons” e dos “maus”.

Ainda, pode-se buscar uma autoridade social revolucionária, um líder, capaz de nos dizer qual seria o caminho “correto” para a emancipação individual e social.


Temos o direito de odiar?
Para tocar em apenas um destes problemas: há quem diga que tem o direito de odiar homossexuais e falar mal de sua forma de vida.

Esta conduta faria parte de sua esfera privada e estaria protegida por crenças religiosas que são garantidas por nossa Constituição em nome da liberdade individual e da liberdade de religião.

Vamos supor por um momento que estas pessoas tenham razão.

Pergunto: a defesa da esfera privada e da liberdade religiosa deve incluir o direito de transmitir aos filhos e filhas uma visão negativa sobre homossexuais e outros grupos? Ela se estende às novas gerações?

Os filhos e filhas devem ser vistos como meras extensões da esfera da liberdade dos pais? O fato de ser pai ou mãe de alguém inclui o direito de criar esta pessoa em escolas religiosas fundamentalistas que reproduzam sem crítica determinados valores morais radicais?

E qual seria a diferença entre o possível desejo de isolamento de algumas comunidades religiosas e o desejo de comunidades indígenas de manterem suas práticas culturais, algumas delas em conflito aberto com visões igualitárias sobre a relação entre homens e mulheres?

Ainda: é democrático afirmar que a única maneira de combater o preconceito é praticar o amor livre, combater o casamento e ter uma vivência de gênero que não se limite aos polos do masculino e do feminino? Esta forma de vida deve ser apresentada aos alunos de escolas públicas em seu material didático?

Estas são questões difíceis, perturbadoras, especialmente quando as pensamos para além de nossa visão pessoal. E a democracia faz com que seja impossível deixar de debatê-las. Não podemos fugir delas, jogá-las para debaixo do tapete.

(continua na próxima semana)

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