Dez motivos para comemorar as ciclovias de São Paulo

BLOG DO SAMUEL - OPERA MUNDI
Envolvi-me em algumas discussões públicas sobre as ciclovias que a prefeitura está implantando na cidade de São Paulo. Por razões muito pessoais, há uma parte de mim muito, mas muito, mas muito feliz mesmo com elas: é a parte de quem foi ciclista desde os oito anos, e que no interior de São Paulo, usou a bicicleta regularmente por anos como veículo de transporte (depois de um acidente leve em 2010, eu achei melhor abandoná-lo temporariamente, só voltei a usá-lo com muita parcimônia nos últimos dias).

Mas há uma parte de mim racional: a que procurou, como jornalista, buscar informações e acompanhar os debates sobre as bicicletas ao longo de quase duas décadas. Editei, em 1997, uma grande matéria, assinada por Bruna Monteiro Barros, na Folha, com o plano de ciclovias da cidade. Não era pequeno, mas não saía nunca do papel. Depois, como correspondente em Paris da mesma Folha, vi uma cidade com seus primeiros 150 km de ciclovia. Li muito sobre espaço e transporte urbano, e fiz algumas reportagens grandes sobre o tema. Metrô, trens, ônibus, bicicletas, demolição do Minhocão, pedágio urbano. Sobre todos esses assuntos, apesar de não ser um repórter de cidades, escrevi, fotografei e até fiz entrevistas em vídeo em minha passagem pelo UOL, especialmente no ano de 2009.

Vou tentar explicar aqui, na forma de sentenças que sintetizam algumas críticas e comentários meus, porque a decisão da prefeitura deve ser comemorada:


1. A prioridade deveria ser o ônibus, não a bicicleta.
Sim, numa cidade em que a maioria dos trabalhadores se desloca muitos quilômetros para trabalhar, a prioridade deve ser o transporte em larga escala. Mas isso já está sendo feito, com os corredores e as faixas exclusivas, e o resultado parece positivo: os ônibus estão quase 70% mais rápidos.


Imagem via Fora do Eixo

2. A implantação das ciclovias não foi planejada.
Isso não é, a rigor, verdade. Desde 2007 a bicicleta é considerada, por lei, um “modal de transporte”, mas já se tem bons traçados de ciclovia para a cidade desde a década de 1990. Essa lei prevê, entre outras coisas, a inserção da bicicleta no planejamento de novas vias, pontes, viadutos e parques, bicicletários em terminais de ônibus e estações de trem e metrô (o que já é uma realidade em muitos locais, como a estação Faria Lima do metrô, linha quatro amarela) e definição do que é bicicletário, paraciclo, ciclovia, ciclofaixa e faixa compartilhada. O que a prefeitura fez foi acelerar o processo, numa correta política de fazer seu efeito ser sentido rapidamente pela cidade. Se as ciclovias não estão ainda como em Paris, em que com o passar dos anos o espaço da bicicleta foi separado fisicamente da via de trânsito em boa parte das ruas, elas estão, na cor vermelha (não, não é petista: muitas cidades do mundo usam o vermelho para identificar as ciclovias) e com tartarugas muito bem sinalizadas. O piso ainda é precário, mas nas ciclovias por que passei, não chega a ser proibitivo.

3. Ciclovia tira vaga de estacionamento e atrapalha o trânsito.
Tira vaga de estacionamento, sim. E essa é uma medida sensata. A limitação de locais de estacionamento faz parte de uma política de “guerra ao carro” que outras grandes cidades, como Paris e Nova York, têm adotado. Paris tem hoje mais de 1.700 estações de aluguel de bicicletas, e Nova York viu o trânsito de algumas de suas maiores avenidas diminuir depois que fez suas ciclovias.

4. São Paulo não é uma cidade para bicicletas, tem muito morro.
É parcialmente verdade. Em artigo publicado na Scientific American alguns anos atrás, o geógrafo Aziz Ab’Sáber usa o caso de Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, para discutir o papel do terreno no uso de bicicletas. Mas se São Paulo tem ruas com muito declive, tem muitas avenidas em planaltos (como a Paulista) e vales de rio (como a Sumaré, as marginais, a Nove de Julho) em que a inclinação não é proibitiva para a bicicleta. Ontem, pela manhã, para minha surpresa, ainda antes de a ciclovia que sobe rua íngreme rua João Ramalho, em Perdizes, entrar em operação, um rapaz subia a rua numa bicicleta que contava com um pequeno motor elétrico de baixa potência, mas suficiente para ajudar em situações como essa.


Ciclofaixa Moema. Imagem via Milton Jung

5. A ciclovia é um projeto para os ricos. Por que Haddad privilegia o centro e não a periferia?
Ao contrário do que normalmente se diz, o centro da cidade tem bairros bastante povoados por trabalhadores para quem a bicicleta é uma modalidade quase gratuita de transporte. Liberdade, Glicério, Barra Funda, Santa Cecília, Bexiga, Brás. Embora a divisão espacial da cidade expresse muitas diferenças de classe, não é possível dizer que toda a pobreza está na periferia e que o centro é “rico”. Além disso, mesmo a classe média mais bem posicionada, em bairros como Perdizes, Higienópolis ou Moema, depende muito mais dos serviços públicos do que imagina. Talvez ela goste de se imaginar independente do Estado, mas sem ele não teria água tratada, polícia, segurança sanitária (vacinas por exemplo) e iluminação pública, entre outros serviços, todos eles muito mais caros do que a construção de ciclovias. 

6. E o pedestre, como fica?
A prefeitura deu início, no ano passado, à instalação de lâmpadas que iluminam as calçadas, o que aumenta muito a segurança do pedestre – não só contra assaltos, mas com efeito na redução do risco de atropelamento e de lesão por queda. Ainda antes das faixas de ônibus, foi a primeira ação da gestão Haddad na questão da circulação. Recentemente, na região da Paulista, foram instaladas placas de orientação dos pedestres, o que mostra uma preocupação com os detalhes bastante grande.

Bicicletada na Av. Paulista. Imagem via Fora do Eixo


7. Esse é um projeto de gentrificação.
A implantação de ciclovias pode, sim, estar associada ou ser “colonizada” por um processo de expulsão dos pobres do coração da cidade, como aconteceu em Paris, hoje um grande parque temático para adultos endinheirados… Mas não precisa ser assim, e nem de longe é o principal motor nesse sentido. Pelo contrário, pode ser um instrumento de democratização do espaço público. Numa linguagem marxista, é preciso dizer que a classe média é composta por trabalhadores mais ou menos autônomos que gozam de mais estabilidade econômica, e justamente por isso qualquer mudança mais brusca parece colocar seu mundo de “privilégios” em risco. Mexer com suas certezas ideológicas explicita o caráter classista do espaço urbano, ou seja, explicita a luta de classes e permite, para uma parte da classe média, uma identificação com setores explorados mais violentamente.

8. Os pobres não ganham nada com as ciclovias.
Quando ouço isso, me pergunto por que então os bairros mais ricos sentem a construção da ciclovia como a perda de um privilégio. Evidentemente, os pobres ganham, sim. Ao desmontar a lógica do carro como o centro da vida social na cidade e incentivar o crescimento de políticas que favorecem os outros modais de transporte, a circulação ganha novas abordagens como questão pública. A reação às ciclovias agora lembra a reclamação contra os corredores de ônibus implementados por Erundina e Marta Suplicy: por que o ônibus (e agora a bicicleta) têm todo esse espaço e eu fico preso no trânsito? Algumas boas razões: bicicletas e ônibus são bem menos poluentes, mais eficientes e baratos que os carros como meio de transporte. Socialmente, é justo e interessante para a cidade favorecê-los.

Ciclovia da Radial Leste. Imagem via Milton Jung

9. O que a cidade ganha com isso?
Já parou pra pensar o quanto a cidade gasta com obras viárias? Só na ampliação da Marginal Tietê foram gastos, até 2011, R$ 1,75 bilhão. Desconstruir esse modelo passa por ações práticas de peso e por ações simbólicas. Esse artigo, da publicação especializada AU, afirma que, “se contabilizarmos todas as obras viárias realizadas nos últimos 30 anos que valorizaram o Centro Expandido da Metrópole, onde vivem os estratos de maior renda, chega-se ao valor suficiente para que tivéssemos hoje toda a rede de metrô básica já funcionando e a rede de trens modernizada”. Isso significa melhores serviços públicos e menor pressão por aumento de impostos.

10. Você por acaso é ciclista? Vai trocar o carro pela bicicleta?
Como já disse lá em cima, tenho uma relação muito especial com a bicicleta. Mas já voltei a usá-la, depois de um tombo de 2010, por conta das ciclovias. Sinto-me muito mais seguro e sinto os carros mais respeitosos do que alguns anos atrás. Não apenas tenho usado mais bicicleta nos últimos dias, como também tenho recorrido mais aos ônibus. Quando pintaram uma ciclovia na porta de casa, confesso que os melhores sentimentos de urbanidade me empolgaram. Tenho um vizinho, músico da Osesp, que hoje pode ir à Luz e voltar andando todo (ou quase todo) o caminho por ciclovias. Sei que a ciclovia não é a solução para todos os males, não é o emplastro Brás Cubas do trânsito de São Paulo, mas me sinto mais confortável numa cidade que trata veículos que não poluem e não fazem barulho com mais carinho.

E finalmente, pensando no futuro: espero, um dia, ter facilidade para atravessar os rios Tietê e Pinheiros em pontes que atendam bem os ciclistas.

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