João Bosco À mesa com Valor


O compositor da esperança equilibrista

Por Adriana Abujamra publicado no jornal Valor



João Bosco entra às 16h30 em ponto na Le Pain du Lapin. Para se proteger do frio e da chuva desta quinta-feira carioca, o músico veste três camisetas sobrepostas e um casaco. Na cabeça, como não poderia deixar de ser, um boné verde de sua coleção - que já conta com mais de cem. A mão direita ostenta unhas compridas feitas em manicure; já a esquerda dispensa cuidados.

A padaria fica no Jardim Botânico e é pequena - meia dúzia de mesas. Paredes ocres, vitrines coloridas com doces variados e no ar aroma de café com pão. Assim que o músico se senta, o garçom aparece com o cardápio. O compositor de "Eu hoje me embriagando/ de uísque com guaraná" vai de litros de suco de laranja sem gelo. É que no dia seguinte ele viaja a trabalho e tem que acordar cedo, um martírio para quem não dorme antes das 4 da madrugada.
"Há uma suspeita de que escassez de cabelos na cabeça influi na quantidade do sono", brinca ele em seu site. Enquanto a cidade é silêncio, o músico vara as noites na companhia de um de seus violões, que fica fora da caixa encostado à parede só esperando para ganhar vida em seus braços.
"Ele é ótimo para a madrugada, ninguém reclama. É mais contido. Não fala alto, tem uma certa delicadeza e não gosta de aparecer."
A discrição do instrumento bem se aplica a seu dono, mas neste ano não tem como o mineiro se esconder. O músico, que aprendeu a tocar violão sozinho e hoje é considerado um dos melhores violonistas do país, completa 40 anos de carreira, lança um DVD e um CD em comemoração à data, acaba de ser o grande homenageado no Prêmio da Música Brasileira e de levar a estatueta por "Sinhá", canção que compôs com Chico Buarque.
Seu nome vinha sendo aventado havia tempos pelos organizadores do prêmio, mas João Bosco desconversava. "Não sou candidato a nada/ meu negócio é madrugada/ mas meu coração não se conforma(...)"
Olha só o Joãzinho - dizia Vinicius cheio de orgulho -, não falei para vocês que o parceirinho era bom?
Enquanto a fome não vem, o autor desse samba "Plataforma", de "O Bêbado e a Equilibrista" e de tantos outros clássicos do nosso cancioneiro nos serve histórias que vai sacando de seu embornal.
João Bosco veio ao mundo trazendo festa para a cidadezinha mineira de Ponte Nova. É que seu pai, o sírio Daniel Mucci, andava desacreditado pela comunidade árabe de lá. Ele e dona Lilá tinham filhas de monte, contavam cinco na ocasião, mas varão que é bom, nada. "Na cultura árabe, a mulher tem uma importância relativa. Como primeiro filho homem, ajudei meu pai em sua redenção."
Mas Mucci, um apaixonado pelo Fluminense, não imaginava que o menino, sangue do seu sangue, pudesse traí-lo. João Bosco virou torcedor do Flamengo, ignorando solenemente as instruções paternas. Mas não o julguem mal, há razões musicais para a heresia. O moleque colecionava figurinhas de um álbum de times de futebol e se deparou com Dida, um jogador do Flamengo com um topete igualzinho ao do Elvis Presley.
João Bosco era fã do Rei do Rock e aos 12 anos já lambuzava o cabelo com brilhantina e cantava músicas do ídolo com seu violão verde, o primeiro instrumento que teve na vida. "Comecei a torcer para o Flamengo por causa do Dida, aliás, por causa do topete do Dida." diz, rindo.
Quando ouviu pela primeira vez Chico Buarque cantando um samba em homenagem ao Fluminense, pensou: "Pô, esse é o cara, é ele o filho que meu pai deveria ter". Para se redimir, João Bosco prometeu que um dia gravaria a música em homenagem a seu Mucci.
Depois de um gole no suco ele canta um trecho de "Bom Tempo", distraindo uma senhora que carrega um guarda-chuva pingando e um moço encharcado que aguarda uma nova fornada de pão: "Vou satisfeito/ A alegria batendo no peito/ O radinho contando direito/ A vitória do meu tricolor..."
Em seu novo CD e DVD "Quarenta Anos Depois", Bosco canta o samba com Chico Buarque. Seu Mucci morreu muito antes de ver a homenagem concretizada "Meu pai fumava e tragava tanto que a fumaça não saía, só entrava."
João Bosco na Le Pain du Lapin: primeira gravação foi em lado B de disco do "Pasquim" que tinha Jobim no lado A: "Eu ainda era estudante em Ouro Preto e fiz nas minhas férias. Tom era um nome muito grande; falei: caramba!"
No dia em que o músico enterrava o pai, morria seu padrinho musical, Vinicius de Moraes, deixando-o órfão duas vezes numa tacada só. Bosco conheceu o poetinha quando cursava engenharia em Ouro Preto. Vinicius costumava passar temporadas na cidade mineira para se desintoxicar do álcool. Hospedava-se no Pouso do Chico Reis, um lugar pequeno com pinturas do artista mineiro Guignard e comandado por Lili, uma dinamarquesa de sotaque carregado.
Assim que soube que Vinicius estava por lá, Bosco não quis nem saber que já era tarde da noite. Catou seu violão, a coragem dos jovens e bateu à porta pedindo para mostrar suas músicas. O poetinha aproveitou a deixa para mandar às favas o jogo de cartas e o chazinho insosso e o levou para um canto. Sacou uma garrafa de uísque e, profissional que era, já enfiou o dedo no copo e com ele começou a rodar o gelo. "Mostra alguma coisa para mim, Joãozinho."
Enquanto ouvia Joãozinho tocar - no violão da república em que morava e que tinha até uma marca de ferro de passar roupa na madeira -, o poetinha fazia anotações num pedaço de papel. Lá pelas 5 horas, os dois tinham esvaziado a garrafa de uísque e cantavam o "Samba do Pouso", feito ali mesmo.
"O título foi em função do nome da pousada. Vinicius desde o início acreditou em mim." Ele se encarregou de apresentar o mineiro à nata dos artistas cariocas em festas que dava em sua casa. "Olha só o Joãzinho" - dizia Vinicius cheio de orgulho - "Não falei para vocês que o parceirinho era bom?"
E, falando em parceiro, é inevitável que o nome de Aldir Blanc venha à baila. O encontro dos dois se deu em 1969 e foi armado por um amigo em comum. O sujeito passava uns tempos em Ouro Preto e esbarrou com Bosco, que se apresentava num bar. "Rapaz, tenho um amigo no Rio que se ouvisse isso aí ia colocar umas palavras que você iria adorar. Ele foi feito pra você." O músico achou que aquilo fosse papo de bar e não deu bola.
Eis que uma semana depois aparece em Ouro Preto uma Kombi vinda do Rio - repleta de poetas, músicos e afins, Aldir Blanc entre eles. Bateram à porta da república de Bosco, mas não o encontraram - ele passava uns dias com a mãe em Ponte Nova. De volta à Kombi, lá foi a trupe atrás do rapaz.
Enquanto dona Lilá preparava uma macarronada para forrar a barriga daquela turma, Bosco pegou seu violão e tocou as músicas que tinha. "Elas pediam palavras (…) um paraíso para letrista em início de carreira(...)", diz Blanc em um texto escrito para a recente homenagem ao amigo. "Já éramos, por temperamento e destino, uma parceria insolúvel."
Em 1972 a dupla seria apresentada ao grande público num disco de bolso do "Pasquim" intitulado "O Tom de Antonio Carlos Jobim e o tal de João Bosco". A ideia do projeto era apresentar um compositor consagrado no lado A, no caso Tom Jobim com "Águas de Março", e lançar novos talentos no lado B, João e Aldir com "Agnus Sei".
"Foi minha primeira gravação. Eu ainda era estudante em Ouro Preto e fiz nas minhas férias da faculdade. Tom era um nome muito grande; falei: caramba!"
A essa altura já está escuro lá fora e buzinas de carros entoam uma melodia desagradável. A fila de gente encasacada e com guarda-chuva na mão para pegar pão fresco é grande e não para de aumentar. Hora de comer.
"Hum, aqui tem uma omelete que adoro. Vem com queijo de cabra, um verdinho e arroz integral." Seguimos a sugestão do frequentador do lugar, que fará seu almoço-jantar.
O garçom sai com os pedidos e o músico volta com o assunto. Quando recebe uma letra do comparsa, João Bosco decora: "E boto a letra pra dentro, como se fosse minha". E é andando que a melodia costuma aparecer. "Eu não sei por quê, mas é muito diferente de pensar sentado. Acho que essa ideia dos gregos de peripatético, de ensinar passeando, vem daí."
O compositor caminhava pelas ruas de Salvador quando a ideia para a música "João do Pulo" passou voando e ele foi atrás. "Comecei a cantar alto sozinho, andando, nem sabia para onde, subia e descia ladeira. Eu passava em frente do hotel e não podia entrar, continuava caminhando e cantando e todo mundo olhando, mas não podia parar enquanto o samba não chegasse ao fim."
Em outra ocasião, os parceiros caminhavam juntos quando de repente Aldir jogou para o amigo a frase "O João mandou parati pra você se segurar". Bosco pegou a bola e na mesma hora devolveu a frase musicada. Num pingue-pongue, Aldir sacou outra. "Só não come a farofa amarela, morena/ Do teu alguidar". E nesse bate e volta, caminhando até que a última estrofe fosse concluída, eles criaram "Parati."
Quem iria imaginar que os parceiros ficariam mais de 20 anos afastados? "Olha, essas coisas acontecem. Tem momentos em que tem que dar um tempo mesmo, porque a aproximação é muito forte. Trabalhamos muito tempo juntos e intensamente, isso tem um preço. Muitas vezes você não sabe traduzir em palavras, não tem maturidade e rompe uma relação."
Chegam as omeletes. O músico dá a primeira garfada, elogia o prato e continua. "Mas a amizade é muito maior, ficou intacta" - diz com os olhos miúdos marejados. Aldir faz referência a esse afastamento em seu texto dedicado ao amigo. Ele diz: "Estivemos afastados 20 minutos, 20 séculos - e esse tempo foi igual a observar as mesmas estrelas de navios diferentes, sentindo a água e o vento que nos reuniria."
Em seu discurso na homenagem do prêmio, João Bosco estendeu o tributo aos grandes compositores que fazem a história da música brasileira e fez uma saudação especial a Aldir Blanc. Mas Bosco não deixou de agradecer a outra parceria sagrada de sua vida, mais antiga e duradoura ainda.
"As pessoas, quando vêm de Minas, trazem pão de queijo. Eu resolvi trazer a Ângela", brincou em seu discurso, em referência à mulher.
Luciana Whitaker/Valor / Luciana Whitaker/ValorDiante da omelete: "A amizade é muito maior, ficou intacta", diz, com os olhos marejados, sobre os 20 anos em que ficou separado do principal parceiro, Aldir Blanc
A primeira vez que os dois se encontraram foi numa festa em Ponte Nova. "Ela estava belíssima, com um vestido longo, um tecido muito fino, de seda, com cores bonitas. Aquela música tocando, a gente se esbarrou e saiu dançando pelo salão." E "Sentindo frio em minh'alma/ te convidei pra dançar/ A tua voz me acalmava/ São dois pra lá dois pra cá..." João Bosco rodopiou a mulher até a varanda e lascou-lhe um beijo. "A gente não estava para conversa fiada, fomos direto ao assunto."
Ângela é artista e uma época fazia esculturas de papel que ficavam espalhadas pelas esquinas da casa "como se fosse uma tribo de mulheres exuberantes, coloridas e de seios fartos". "Eu mostrei uma música para Capinam e ele se inspirou nessa cena para fazer a letra de 'Papel Machê'." O casal tem dois filhos, Francisco - escritor e ensaísta, que acaba de dar a primeira neta a João Bosco, e Júlia, que é cantora.
Quando Bosco se abaixa para garfar mais um pedaço de sua omelete, pousa um louva-a-deus em sua cabeça bem no meio do boné. Diz a superstição que o inseto é sinal de sorte. E sorte é o que não lhe falta. "Dotô/ E ontem sonhando comigo mandou eu jogar/ No burro/ E deu na cabeça a dezena e o milhar..." Quando criou "Incompatibilidade de Gênios", seu compositor nem sonhava com o que estava prestes a acontecer.
Na época João Bosco andava numa pindaíba só. Tinha aberto com Paulinho da Viola uma editora musical, pois achavam que assim conseguiriam ganhar algum dinheiro. "Ficamos mais duros que antes. Porque nós não somos 'businessmen', somos compositores, mais para executados do que para executivos." Os amigos estavam no Corcel 76 que Bosco tinha na época, lamentando, quando passaram em frente de uma casa lotérica. "Meu irmão, vamos fazer um jogo." Entraram com os funcionários já abaixando a porta.
Pegaram uma cartela e cada um dava um palpite. "Barcelona e Real Madrid? Empate. Sua vez." Para evitar confusão, marcaram triplo apenas nos times de coração, Vasco de Paulinho e Flamengo de João. E não é que os danados fizeram os 13 pontos? Foi com esse dinheiro que João Bosco comprou seu primeiro apartamento no Jardim Botânico, onde morou por 20 anos.
"Isso é quase um samba, né? Acertar na loteria." E não? Saco meu bloco de notas e peço dicas de números para fazer minha fezinha na Sena.
O garçom leva embora os pratos vazios. E nem precisamos do cardápio para escolher a sobremesa: decidimos dividir um cheesecake de laranja exibido na vitrine.
Muitos intérpretes emprestaram a voz para as canções de Bosco, mas poucos o fizeram como Elis Regina. "Ela chamava as canções para si como se fosse a autora. Era muito certeira." Um dos exemplos mais evidentes é sua gravação de "O Bêbado e a Equilibrista", que se transformou na trilha sonora da anistia.
Enquanto garfamos o cheesecake, o músico se lembra de uma visita que fez à Pimentinha. Ela ensaiava para o show "Falso Brilhante" e Bosco quis dar um abraço de boa sorte. Assim que entrou no Teatro Bandeirantes, o mesmo em que ela seria velada anos mais tarde, sentiu um clima um tanto esquisito.
"Ninguém no palco, tudo parado, um silêncio." Encontrou Elis no camarim, desanimada. "Ela investiu a vida naquele show circense, era natural que estivesse apreensiva. Comprei uma garrafa de conhaque barato, eu era duro na época, e tentei levantar seu moral. Saí de lá ela estava bem mais animada. O show se tornou lendário, era um passo à frente para a época" - seis músicas do repertório eram de autoria de Bosco.
Vão-se os pratos vazios, vêm os cafés. Ainda chove, e quando o músico descobre que a repórter logo mais pegará a ponte aérea de volta para casa se espanta: "Na chuva, de noite, menina!"
Bosco tem pavor de avião e descobriu na música um calmante para lidar com a situação. Numa viagem à Europa, quando o avião saiu da costa brasileira para atravessar a costa africana, "um ponto cego, em que não adianta chorar que a mãe não ouve", "Estate", com João Gilberto, tocou no seu iPod. Bosco sentiu uma paz e um conforto que nunca tinha experimentado antes dentro de um avião. Desde então, ele põe e repete a música durante o voo inteiro. "Já ouvi tanto que conheço os arranjos de cor, sei cada milímetro daquela gravação. A música me deixa bem, ela tem esse poder."
Há pouco tempo Bosco fez uma biópsia e não ficou muito contente com os resultados. "Essas coisas de homem, próstata." Saiu do hospital cabisbaixo: "Mas que vida é esta?" Entrou numa cafeteria para pôr os pensamentos em ordem e tocava "Isaura", de Herivelto Martins.
"Essa música pra mim é a perfeição." Limpa a garganta e canta um trecho: "Ai, ai, Isaura/ Hoje eu não posso ficar/ Se eu cair em seus braços/ Não há despertador que me faça acordar". "A música abre uma vida para mim, me deixa esperançoso, me empurra pra frente, que se a vida durar meia hora já foi bom."
Nosso encontro, que já dura quatro horas, chega ao fim. Bosco precisa arrumar as malas e se preparar psicologicamente para sua viagem do dia seguinte e não posso perder a última ponte aérea. Saio de lá correndo para o aeroporto. E, se tiver turbulência, tenho a que recorrer. Levo, guardada em meu gravador, a voz de João Bosco cantando "Estate".

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