Paraísos seculares

Hélio Schwartsman

Na semana passada, escrevi para a edição impressa da Folha uma coluna em que metia a colher na polêmica entre meus amigos Ives Gandra Martins e Daniel Sottomaior acerca do "fundamentalismo" ateu. Como sempre ocorre quando abordo o tema, minha caixa de correspondências ficou atulhada de mensagens, contra e a favor.

Aproveito a infinitude do espaço proporcionado pela internet para retornar ao problema, desenvolvendo melhor alguns pontos importantes que, a julgar pelos e-mails, não ficaram muito claros.

Basicamente, coloquei-me do lado de Daniel, quando afirma que não existe algo como fundamentalismo ateu, pelo menos não se definirmos o ateísmo como a posição daqueles que não acreditam em afirmações extraordinárias como a existência de um Deus pessoal, milagres e demais violações ao que sabemos sobre a física e a lógica sem que elas se façam acompanhar de evidências palpáveis.

A palavra fundamentalismo, compreendida como uma adesão irrestrita a dogmas e crenças axiomáticas, não combina com ateísmo, porque o incréu racional se veria compelido a mudar de opinião com a apresentação de provas. Se o Criador surgisse nos céus e se comunicasse com a totalidade da população mundial demonstrando seus poderes, por exemplo. Convenhamos que, se o Deus judaico-cristão de fato existisse e tivesse apenas uma fração dos poderes que a tradição lhe atribui, não teria nenhuma dificuldade para realizar um truque desses.

Já um fundamentalista religioso é alguém que não muda de opinião, pois não há uma forma lógica possível de indicar para além de qualquer dúvida que o Deus judaico-cristão não existe. Ele é definido de modo que sempre pode escapar para os interstícios do discurso e da própria epistemologia. Ou, para colocar o problema num exemplo concreto, eu poderia demonstrar a existência de Papai Noel capturando-o e o apresentando aos céticos, mas não há como provar que o bom velhinho não existe, pois o fato de eu não encontrá-lo mesmo com séculos e séculos de busca pode significar apenas que não o procurei direito. Nesse sentido, os ateus estão do lado confortável da equação, já que, por idiossincrasias da lógica (é difícil refutar um juízo particular negativo), caberia aos religiosos provar que o Deus monoteísta existe, o que ainda não fizeram em cerca de 2.000 anos de cristianismo e 3.000 de judaísmo.

Se a questão da existência ou não de um Criador é tão elusiva do ponto de vista formal, por que a maioria da população do planeta continua, com tão pouca base concreta, acreditando em algum tipo de entidade metafísica que comanda ou pelo menos influi nos destinos dos homens?

O meu palpite, que é referendado por um número crescente de psicólogos e neurocientistas como Catherine Caldwell-Harris, Andrew Newberg, David Comings, é o de que estamos aqui lidando com diferentes estilos cognitivos. Ateus privilegiam as camadas mais externas e frontais do cérebro, além do córtex anterior cingulado, dando preferência a raciocínios lógicos e exatos, enquanto os crentes se fiam mais nos lobos temporais, confiando em suas intuições. Não é um acaso que uma resposta religiosa comum às objeções dos ateus seja: "eu sei que Ele existe".

Pessoalmente, já adotei um ateísmo mais militante. Achava que era importante expor o maior número de pessoas a ideias ateias para que elas pelo menos soubessem que é possível pensar fora do registro das religiões e chegassem a suas próprias conclusões. Continuo pensando que o debate franco é positivo, mas estou cada vez mais inclinado a considerar que o que define a religiosidade de uma pessoa é uma complexa combinação de fatores genéticos e socioculturais. Nesse contexto, a militância (seja ela do lado religioso ou ateu) se torna menos importante, pois acaba sendo uma espécie de pregação para convertidos.

É claro que, no que concerne a direitos e liberdades, tanto religiosos como ateus estão autorizados a dizer o que bem entendem. Enquanto permanecermos no reino das palavras, estamos seguindo as regras do jogo democrático. Tentar converter ou desconverter alguém é plenamente legítimo, tanto para Richard Dawkins como para os testemunhas de Jeová. E nem é preciso que os argumentos sejam bons. Só o que não pode acontecer é que saiamos do campo da semântica para adotar técnicas mais físicas de persuasão, como a censura a ideias, sob pena de prisão, e as fogueiras, que já foram utilizadas no passado. É também por aí que acho que não podemos falar em fundamentalismo ateu, uma vez que jamais ouvi falar de um que adotasse outra arma que não o discurso. Na verdade, considerando que foi só muito recentemente que conquistaram o direito de expor livremente seus pontos de vista, ateus até que fazem um uso bastante parcimonioso da palavra.

Aproveito este restinho de coluna para falar de um bom livro a respeito de secularismo que li há pouco. Trata-se de "Society without God" (sociedade sem Deus), de Phil Zuckerman. Nele, o autor, um estudioso das religiões, relata sua experiência de viver por 14 meses na Escandinávia, entrevistando centenas de dinamarqueses e suecos a respeito de suas convicções religiosas.

Estes dois países são provavelmente as sociedades mais seculares que já existiram no planeta. Menos de 20% dos suecos acredita em um Deus pessoal e, mesmo para os que creem, a religião ocupa um pedaço bem pequeno de suas vidas. Entre os dinamarqueses a posição do Criador não é muito mais confortável. Não obstante, contrariando todos aqueles que afirmam que é da fé que surge a moral, as irreligiosas Suécia e Dinamarca estão entre os melhores lugares do mundo para viver, com democracias sólidas, muita riqueza e bem distribuída, amplo sistema de seguridade social, baixíssimas taxas de criminalidade, ótima educação etc. etc. De acordo com Zuckerman, elas são o "paraíso terrestre para as pessoas seculares".

Curiosamente, e isso pode incomodar alguns ateus mais veementes, dinamarqueses e suecos, gostam de declarar-se cristãos, mesmo quando não acreditam em Deus. Segundo Zuckerman, isso se deve a um mecanismo de identificação cultural, não muito diferente daquele pelo qual ateus de ascendência judaica se dizem judeus. Mais do que isso, boa parte dos escandinavos não deixa de pagar o "imposto da igreja" (1% da renda), o que lhes dá o direito de casar-se, batizar seus filhos e ser enterrados de acordo com os ritos luteranos. Mesmo cientes de que é um mau negócio do ponto de vista financeiro, não abandonam a igreja oficial nem a liturgia, que entendem como parte de sua herança étnica. Para Zuckerman, eles conservaram os ritos de passagem esvaziando-os de seu significado religioso.

O movimento desses escandinavos em direção ao secularismo não se deu da noite para o dia, mas ao longo de gerações. Filhos foram ficando menos religiosos que seus pais que já eram menos religiosos que seus avós. Zuckerman levanta várias hipóteses para explicar o fenômeno, mas não é o caso de reproduzi-las aqui. O que vale a pena reter é o fato de que é perfeitamente possível viver em sociedades morais e não religiosas. Do que se depreende da Escandinávia, seria até tentador afirmar que a taxa de religiosidade é inversamente proporcional ao grau de desenvolvimento social e material, mas isso seria forçar as regras da lógica. Correlação, afinal, não é sinônimo de causa.

Depois de muitos e muitos séculos de censura religiosa, chegamos no Ocidente a um estágio em que todos os lados podem expor seus argumentos como e quando quiserem. Não chamaria isso de fundamentalismo, mas de democracia.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em Filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve na página 2 às terças, quartas, sextas, sábados e domingos. Na Folha.com, escreve às quintas-feiras.

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