Cuba quer ser menos ilha

Quando fazemos uma viagem a qualquer país, a volta é sempre marcada por uma mesma pergunta. “Como foi lá?”, perguntam todos. De personalidade discreta, sempre que volto de algum lugar, invento uma síntese sutil, que repito como um mantra às pessoas, durante esses dias de monopergunta. Uma resposta sempre válida para qualquer viagem é “gostei de algumas coisas, e de outras não”. Vale para todo país ou lugar. Para Cuba, porém, nunca uma resposta foi tão precisa quanto essa. “Gostei muito de algumas coisas, e não gostei nada de outras”, seria uma resposta mais precisa. Na ilha, há conquistas sociais que saltam aos olhos, imensamente – principalmente do tipo de viajante que busca um outro modelo de sociedade. Outros elementos do país, porém, são extremamente desestimulantes e condenáveis. Ciente da polêmica em que estou me metendo, e respeitando posições distintas das minhas, quero aqui tratar dos dois lados da moeda.
Fui a Cuba da maneira exata como sempre quis ir. Não pretendia ir como turista, vendo prioritariamente os pontos turísticos estereotipados, sem pegar o país com a mão. Seria como vir ao Rio e só ver o Cristo Redentor, o Pão-de-açúcar e Copacabana. Também não queria ir com as Brigadas, e conhecer só gente de esquerda, a enaltecer os feitos da Revolução. Queria ir como o mochileiro de sempre, conversando com as pessoas nas ruas – o que em Cuba é muito fácil –, e utilizando os serviços do país como se fosse um cubano – o que em Cuba é muito difícil. Entrar no único país socialista do Ocidente é como passar por um portal. De repente você ingressa num outro mundo, que obedece a uma outra dinâmica. Leva certo tempo pra se posicionar nessa nova ordem. No início, as perguntas ganham de goleada das respostas.

Vivi em casa de cubanos, mesmo quando me lancei pelo interior do país. Ora eu me encantava com a simpatia desse povo, lindo como ele só, ora eu lamentava a energia elétrica que caía, ou a água que acabava. Ora me cativava a vasta cultura dessa gente, ora me irritava a falta de acesso deles a informações básicas. Anotei cada tópico das 21 principais conversas que tive. Pretendo fazer um relatório detalhado, um raio-x da Cuba antes das reformas (o país passará, a partir de abril, por reformas radicais na economia). Como os apontamentos somaram nada menos do que 17 páginas, resolvi escrever esse artigo, sintetizando. Estou ciente de que receberei dolorosas pedradas de todos os lados – tanto dos que vêem Cuba como modelo a ser seguido, quanto dos que a consideram uma ditadura que se perdeu. Mas considero que se eu fui, vi e senti, tenho a obrigação de me posicionar. Quero levar as pedradas com grandeza, e estar sempre aberto ao debate.

A ser divulgadas em breve, minhas anotações foram divididas em 32 tópicos (História e Revolução; Mudanças em Cuba; O homem socialista; Racionamento de alimentos; Agricultura; Segurança Pública e Drogas; Prostituição; Educação; Saúde; Urbanismo; Habitação; Missões internacionalistas; Democracia; Sensação de decepção; Esporte; Turismo; Religião; Cultura; Economia; Embargo; Energia; Mercado negro; Juventude; Relação com EUA; Fuga da ilha; Diferença social; Visão do Socialismo; Propaganda; Transporte; Previdência Social; Comunicação; Brasil e Lula).

Cheguei lá ao final de dezembro, quando Raul Castro, presidente do Conselho de Estado, fez um discurso anunciando o VI Congresso do Partido Comunista Cubano, a ser realizado em abril. Mudanças radicais no sistema econômico do país serão lá deliberadas. Especula-se que haverá de 500 mil a 1 milhão de demissões, regularização de atividades econômicas hoje não reconhecidas, incentivo ao empreendedorismo (que eles chamam de ‘trabajo por cuenta propia’), estímulo ao cooperativismo, fim da fração de alimentos para os cidadãos (que os alimenta gratuitamente por 10 a 12 dias), unificação das duas moedas, etc. Não se sinaliza na direção de mudanças políticas – e boa parte da população, aparentemente, não quer de fato a adoção de elementos do modelo de democracia liberal. Muitos, porém, reclamam por medidas democratizantes (embora, no sistema cubano, haja elementos democráticos inexistentes em muitas democracias liberais ocidentais, como os Comitês de Defesa da Revolução que, totalmente ineficientes na capital, funcionam bem no interior, e o financiamento público e igualitário de campanhas).

No interminável e repetitivo discurso de Raul, um pequenino trecho me chamou a atenção. Ele disse que a geração dele não poderia passar pelo governo sem que o problema da economia fosse resolvido. Ato falho ou não, as palavras de Raul eram um reconhecimento de que o “problema da economia” jamais fora resolvido. E, admitamos, o “problema da economia” não é qualquer problema… Pensei: “52 anos de Revolução, e esses caras discutindo como resolver o ‘problema da economia’!” Sem falar que, durante um bom tempo, ganharam uma mesada gorda da União Soviética, interessada em um aliado no quintal dos EUA em plena Guerra Fria.

Por outro lado, como não se encantar com as conquistas sociais? A educação de ótimo nível é de todos, e para todos. “No seu país tem a escola do rico e a escola do pobre. Pra nós, isso é difícil de entender”, me disse um cubano. E, no sistema educacional, preocupa-se mais com a formação humana do que com a formação para o mercado. As consequências disso na formação do homem socialista cubano são visíveis. O nível de solidariedade, de confiança e de afeto é muito maior. E de confiança no outro também. As pessoas não desconfiam das outras, nas ruas. Até porque quase não existe violência urbana. Entretanto, não considero essa solidariedade suficiente para funcionar como motor da economia. Porque, para uma economia funcionar sem a motivação da acumulação de poder e dinheiro (capitalismo), é preciso que a motivação da solidariedade seja enorme. Na verdade, nos negócios cubanos, também é comum a malandragem e a vagabundagem.

A Saúde também é excelente, além de ser universalizada. Todos têm médicos que os visitam em casa, e atendimento qualificado no hospital. Talvez por isso tenham uma expectativa de vida maior que a dos EUA (78,3 contra 78,2 anos), e Índice de Desenvolvimento Humano igual a 0,863 (51º no mundo). Previdência Social também não é problema. O salário do aposentado é baixíssimo – como de todos os cubanos – mas os direitos nunca estão sob ameaça. Habitação é um grave gargalo. Quase todas as casas são de antes da Revolução. Na capital, são prédios velhíssimos, em péssimo estado de conservação. Visualmente, em Havana, é como se 80% do território urbano fosse de ocupações de prédios. “É como se toda a cidade fosse uma favela”, me disse um cubano, demonstrando que a palavra favela, aprendida no programa televisivo preferido de todos – a novela brasileira –, entrou no dicionário deles. O analfabetismo foi praticamente extinto do país em apenas dois anos. Mas o analfabetismo digital (informática) é massivo.

No campo da Cultura, a riqueza é – e sempre foi, na história cubana – interminável. Ritmos musicais vastos e lindos, manifestações artísticas e religiosas variadas e belas. Livros são muitos, e se compra por preços muito baixos. Mas o corte ideológico é extenso e radical. A maior parte dos livros é sobre a Revolução – os herois da Revolução, as conquistas da Revolução, os ideais da Revolução, etc. Que não se espere encontrar um livro sobre, por exemplo, religiosidade hindu, filosofia clássica, ficção estadunidense ou sociologia não-marxista. Não existe. O cubano pode ler muito livro, desde que seja sobre a Revolução. Há cinema muito barato por toda parte – uma conquista e tanto. Não há filmes que priorizem o entretenimento – a não ser na “TV a gato”, que pega canais hispânicos de outros países, e custa cerca de dez dólares mensais no mercado negro.

A Comunicação é um desastre! Internet, só nos hotéis de luxo, a preços exorbitantes e pouca velocidade. Quase nenhum cubano tem condições de pagar. Censura lamentável. Jornais são apenas dois, muito semelhantes. São estatais (se não deseja ter veículos privados, Cuba deveria ter ao menos exercitado construir os públicos). Li manchetes inverossímeis como “Lula faz sérias críticas a imperialismo estadunidense”. Nas TVs, também estatais, há leitura diária dos artigos de Fidel Castro, antes do noticiário. Ouvi chamadas hilárias como “Coreia do Sul rejeita, mais uma vez, proposta de paz da Coreia do Norte”. Os desenhos animados são, ainda, os cartoons educativos que eram importados da União Soviética até os anos 1980. Em Cuba, quando a criança não quer comer, a mãe ameaça: “se você não comer tudo, vou te colocar pra assistir os desenhos russos!” Praticam um jornalismo panfletário, raivoso, com incansável idealização dos personagens da Revolução. A Comunicação em Cuba, repito, é um desastre. O que não quer dizer que a nossa seja uma maravilha…

Os cubanos criaram um bom sistema de agricultura urbana. Funciona razoavelmente bem. Foram obrigados a criá-lo pela carência de petróleo – que atribuem ao embargo dos EUA, embora tenham sempre contado com a camaradagem da Rússia, e depois da Venezuela. Têm dificuldade, portanto, de transportar alimento pelo país, por falta de combustível. E, sem petróleo, também não têm produzem agrotóxico. O resultado é que criaram um sistema urbano de agricultura orgânica. Os vegetais são plantados na cidade. Vegetariano, comi muitíssimo bem durante todos os dias em que estive no país. Quem come carne, porém, aparentemente tem dificuldade. Um dado ruim é que 70% dos alimentos do país são importados, e somente metade da terra agricultável de Cuba é utilizada.

Cada vez mais intenso, o turismo traz muito dinheiro. Mas também promove distorções. Nas cidades turísticas, se vê as mesmas práticas no comércio dos países capitalistas. Forma, também, uma classe social com maior poder aquisitivo (nada comparado à imensa desigualdade dos países capitalistas). Cria também distorções: a riqueza dos onipresentes jineteros – os cubanos simpáticos e sorridentes que abordam turistas para vender-lhes alguma coisa inútil. Disse-me o cubano Antonio Masseo: “sem considerar a corrupção, no seu país as pessoas que vivem melhor são as que trabalham, certo? Aqui é o contrário. Esses vagabundos (jineteros) vivem muito melhor do que quem trabalha”. Defensor veemente da Revolução, ele também tinha, como se vê, suas críticas.

Não há problema de violência, estresse nas ruas, longos engarrafamentos, poluição expressiva, e todas as coisas dessa absurda e corrida vida dos países capitalistas. Vi apenas dois mendigos nas ruas. Há muito alcoolismo e suicídio (encoberto pelos dados governamentais). Há muita ajuda a países do mundo inteiro, especialmente pelos excelentes médicos que o país forma a todo vapor – chama a atenção como a mídia corporativa ocidental omite a maravilhosa atuação internacionalista desses médicos. Em seu vizinho Haiti, por exemplo, estão desenvolvendo um trabalho maravilhoso e abnegado. Mas o salário que os médicos recebem é extremamente pequeno, um dos menores de Cuba, não importa quanto tempo estudem.

A abnegação e o sacrifício são muito comuns no homem socialista que Cuba logrou criar. O homem socialista cubano é majoritariamente comunicativo, desapegado, sorridente, tranquilo. Os vagabundos também são fartos, aqueles que, imersos numa lógica não-meritocrática, não vêem por que trabalhar. Diz-se que de 30% a 40% dos funcionários públicos não fazem nada – são os mesmos que agora estão com a corda no pescoço, com as reformas. Também há os médicos que, em missão internacionalista, fogem para nunca mais voltar. São considerados traidores.

Embora a atividade seja proibida, se vê muitas prostitutas. As mais bonitas acabam conseguindo sair do país. São prostitutas diferentes das de países capitalistas. Tratam o cliente como namorado, atendem a todos os seus pedidos, apaixonam-se por eles. Não existe, obviamente, uma casa de prostituição. As outras atividades ilegais são incontáveis. Pelo mercado negro, tudo se pode conseguir. Até internet em casa, que custa cerca de três dólares a hora. Baratíssimo, o transporte é escasso, lotado e de baixa qualidade. Ônibus velhos são doados pelo Canadá, outros mais novos vendidos a preços módicos pela China, por serem de baixa qualidade. Aliás, em Cuba há a filosofia “mas con menos” – material de baixa qualidade para o maior número de cubanos possível. Os eletrodomésticos e as roupas, por exemplo, são de marcas ruins, quebram ou rompem-se facilmente – mas são realmente para todos.

Enquanto eu só havia estado em Havana, a capital, minha sensação de decepção com Cuba era muito grande. Eu pensava: “há coisas lindas nessa outra ordem, mas está claro pra mim que essa economia não funciona. Dependem demais do turismo e das remessas estrangeiras”. Quando viajei pelo interior, parte dessa sensação se desfez. As cidades interioranas me animaram um pouquinho mais. São mais simples, menos dramáticas. Voltei com duas sensações básicas: a) muitas das conquistas deles nos deveriam envergonhar. É um absurdo que ainda haja 9% de analfabetos num país como o Brasil. Que o sistema de saúde ainda seja tão precário. E tantos e tantos outros problemas; b) não é por aquele sistema, em seu conjunto, que eu desejo lutar. Quero que a ordem capitalista seja um dia superada, em meu país. Mas não exatamente por aquela ordem. Por alguma outra, ainda a ser imaginada e construída.

A verdade é que a maioria dos cubanos vive com uma dificuldade gigantesca. Habitando a casa deles, vivenciei isso com eles. Vivem com o dinheiro contadíssimo o tempo todo. A comida a que têm direito só atende a um terço do mês, e o salário é baixíssimo – de R$ 50 a R$ 80. Basicamente, só há duas fontes extras de renda, ambas oriundas do capitalismo: o turismo, e as remessas que enviam a seus parentes aqueles cubanos que fugiram do país. O embargo promovido pelos EUA realmente gera problemas graves a Cuba – muito graves. Mas às vezes dá impressão de que utilizam o embargo como desculpa para tudo. Há um setor no governo criado apenas para driblar o embargo, e países próximos como México e Canadá se esforçam para auxiliar. Ou seja, mesmo grave, o embargo não é tão embargo assim.

Ainda há muito o que poderia ser escrito. Mesmo que jamais retorne, levarei anos digerindo Cuba. Foram 19 dias forçando para que o país entrasse por todos os meus poros. Tendo, certamente, a mudar de opinião sobre muitos elementos, à medida que converse e reflita mais. Porém, dificilmente algo desconstruirá as duas sensações principais, já citadas acima: a) maravilhosas, as conquistas sociais cubanas deveriam nos envergonhar; b) a outra ordem pela qual luto, e pela qual quero dedicar todos os dias de minha vida, não é a cubana. Seguramente não é. Se você tem uma opinião diferente, te espero ansioso pra conversar.

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