Teve Copa. E teve relincho

Ao ser xingada, Dilma não se tornou alvo da insatisfação, legítima ou não. Tornou-se alvo de quem perdeu a vergonha de fazer em público o que faz todo dia no sofá: relinchar



A presidenta Dilma Rousseff cumprimenta o primeiro-ministro da Croácia, Zoran Milanovic e a presidenta do Chile, Michelle Bachelet, após o jogo de abertura da Copa do Mundo. Durante a partida, ela foi vaiada pelos torcedores

O brasileiro médio saiu do armário. Na abertura do maior evento da história do País, teve a chance de mostrar em rede mundial sua maior virtude e não decepcionou: sabendo que seria visto e ouvido, fez exatamente o que faz em seu sofá diante da tevê e sem o menor pudor: relinchou. E relinchou alto.

Não, não me refiro às vaias contra a presidenta Dilma Rousseff, talvez o maior termômetro do esgotamento de um modelo de gestão incapaz de propor soluções novas para velhos problemas. Me refiro aos xingamentos intercalados entre gritos de brasileiros com muito orgulho e muito amor. Confortáveis nas cadeiras padrão-Fifa, bem vestidos e bem almoçados, os representantes da brasilidade média não hesitaram em mandar em coro um “Ei, Dilma, vai tomar no cu”. O alvo do azedume, vale lembrar, era simplesmente a maior autoridade do País. E a autoridade, quando dá a cara ao tapa, como fez, não está imune a críticas ou vaias, merecidas ou não. (Até as cadeiras montadas em cima da hora na Arena Corinthians sabiam dos riscos da hostilidade. O risco, portanto, foi calculado). Mas, ao ser xingada, Dilma não se tornou apenas alvo de uma insatisfação. Torna-se alvo da ignorância, do desrespeito e da arrogância.

Ignorância porque, se você perguntar aos probos embandeirados os motivos da bronca, duvido que soubessem responder além das quatro linhas do campo: “roubalheira”, “corrupção”, “vai para Cuba”, “metrô”, “legado”, “tem que sentar o cacete”, “impostos”. É a reação do cidadão Teletubbie, já descrito neste espaço: o cidadão que associa signos e produz emoções a partir de cores, bandeiras e frases feitas, mas é incapaz de ligar os pontos e elaborar qualquer relação entre alhos e bugalhos. Por isso, quando estimulados por uma imagem no telão (o poder?) relincham: aprenderam em casa e nas escolas de ponta que xingar presidente era exercício de cidadania, ainda que reclamem de acordar cedo no domingo para votar a cada dois anos.

O xingamento é o descarte da associação clara entre os pontos, entre eles o fato de que essa Copa não é dessa presidenta. Estava definida cerca de quatro anos antes de ela tomar posse e acordar com um Mundial inacabado no colo. Foi, talvez, a pior pegadinha deixada pelo seu padrinho e antecessor, este sim um entusiasta da ideia – assim como todos os governadores e prefeitos que saíram no tapa para ter em seu quintal uma Copa para chamar de sua. Mas autômato não vê fato nem vê argumento: apenas xinga quando sensibilizado, principalmente quando se sente confortável ao lado de tantos autômatos. (Não deixa de ser curioso: no tete-a-tete e em reuniões do condomínio, o rebelde de arquibancada chama bandido de doutor). O lapso entre os pontos chega ao absurdo de associar a crise do metrô à esfera federal, e não a uma quadrilha que transformar, nos últimos 20 anos, o sistema se transporte público em pula-pula de quermesse, com direito a cartel, propina, chefe de tribunal de contas enchendo as burras e secretário de primeiro escalão fingindo que o assunto não é com ele.

Mas a arrogância escancarada é filha da ignorância: a ignorância de quem vive em um país imaginário cujas mazelas são exteriores a ele, seu corpo e seus amigos e familiares. De corpo imune em corpo imune criamos um país sentado no sofá (ou na arquibancada) à espera de milagres de tudo o que vem de fora: do professor, do porteiro, do policial e do político que ele despreza.

Mas erra quem imagina que a arrogância ganhou holofote apenas no estádio. Fora dele, os que propunham o boicote ao Mundial escancaravam tudo o que sabem sobre a população mais surrada do País (nada) ao impor o que era bom pra tosse: desligar a tevê ou torcer para a Croácia. Não deixa de ser simbólico: o detentor da luz e da consciência vai até a comunidade dizer o que o morador da comunidade deve fazer para não ser um autômato. “Se o Brasil ganha, ganha a propaganda nacionalista. Mas eu acho que o Brasil vai ganhar porque a Copa está comprada. A reeleição da Dilma está no pé do Neymar”, disse à Folha de S.Paulo, durante o jogo, uma atriz de 26 anos que teve a bondade de sair de casa para, na sua cabeça, catequizar os nativos.

Curiosa essa forma de conscientização: é mais ou menos como fazíamos no computador ao guiar os lemmings, aqueles bichinhos que não sabiam o que queriam nem para onde iam e dependiam da mão destra do jogador para não cair em abismos nem bater a cabeça na parede. Não, minha cara. A alienação que você jura combater não é resultado de propaganda nem do futebol. E, sim, é possível ser consciente e se rebelar com o que deve ser questionado antes, durante e depois de 90 minutos de jogo. Para quem levanta cedo no dia seguinte às partidas, a vida segue, talvez com mais cor, talvez com menos disposição. Mas segue. Seria melhor se seguisse sem levar nas costas as botas de uma velha pedagogia: a pedagogia do subestimado.

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