A "paciência estratégica" do Brasil e o futuro

Sergio Leo no Valor Econômico (para assinantes)
28/06/2010

O governo da Bolívia havia decretado poucos dias antes a nacionalização das reservas de gás do país, com envio de tropas a instalações da Petrobras, quando se encontraram, em Viena, para uma reunião de cúpula com países europeus, os presidentes boliviano, Evo Morales, brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, e venezuelano, Hugo Chávez. Lula, durante o encontro, não deu atenção e voltou as costas ostensivamente a Chávez, que, dias antes da nacionalização, havia se reunido com Morales e Fidel Castro, em Cuba, e era apontado como incentivador da decisão boliviana. Abordado pelo venezuelano, Lula discutiu com ele e o acusou de provocar problemas internos no Brasil.

Chávez, segundo contaria ele próprio, mais tarde, a pessoas próximas, garantiu a Lula que Morales nada havia dito sobre a decisão a ele ou a Castro. Prometeu atuar para baixar o grau de hostilidade do colega boliviano. Verdade ou não, na mesma reunião de Viena, mais tarde, Morales acusaria a imprensa de tentar confrontá-lo com Lula - e, pouco a pouco, o governo boliviano negociou indenização a preços de mercado pelos ativos da Petrobras, além de tratar a estatal brasileira com uma retórica alguns tons abaixo da usada contra outras petroleiras no país. O governo boliviano reprimiu prontamente uma tentativa de grupos indígenas de cortar o fornecimento de gás ao Brasil.

O aumento desejado pelo boliviano para o gás fornecido ao Brasil foi objeto de longa negociação e frustraram-se as intenções de Morales - em lugar de revisão, houve pequena compensação financeira pelos gases e outros produtos misturados ao gás exportado. Quatro meses depois da nacionalização, o especialista Raphael Rezende Esteves constatava, no boletim de Conjuntura Internacional da PUC de Minas, que o Brasil havia sofrido "poucos impactos" com a medida. No mês seguinte, seria lançado o Plangás, Plano de Antecipação da Produção de Gás, que, em 2009, permitiria ao Brasil produzir no país o equivalente a 60% do gás importado.

O caso boliviano não é o único criticado pelo que se considera excessiva complacência do governo Lula com países vizinhos. Mais recentemente, Brasil e Paraguai firmaram acordo que contornou a reivindicação de revisão da tarifa de energia de Itaipu. Prevê o financiamento de uma linha de transmissão (bancado por um fundo do Mercosul), tem promessas de avaliação de propostas de venda de energia a terceiros países e aumentou uma pequena parcela do custo da energia recebida pelo Brasil, pela qual o país paga uma "compensação", porque originalmente essa energia é destinada ao Paraguai. O respeitado Cláudio Salles, do Instituto Acende Brasil, acusa o governo de abrir precedentes com a negociação, perturbar o mercado e aumentar indevidamente o gasto da União e dos consumidores brasileiros.

Os contratos de Itaipu, embora garantam um dos mais baixos preços da energia fornecida no Brasil (eram de US$ 45,3 por MW/hora em 2008) não deveriam ser revistos por criar o risco de submeter o custo de fornecimento da energia a conveniências políticas. Os paraguaios argumentam que, em 1986, o plano Cruzado, por conveniências brasileiras, congelou a tarifa, gerando prejuízos a Itaipu. Mirando a frágil democracia paraguaia e a importância de Itaipu no debate político local, o governo brasileiro se pergunta se não foi razoável o custo pago para reduzir o peso da hidrelétrica na disputa política local e na agenda conflitiva entre Brasil e Paraguai.

Diplomatas brasileiros defensores da política de conciliação com os vizinhos negam que haja leniência do governo, e argumentam que nem todos os diálogos entre os governantes chegam ao conhecimento do público - especialmente os mais ríspidos, quando há ameaça de rompimento ou represálias do Brasil a atitudes dos vizinhos. Lembram que a relação amistosa mantida pelo Brasil permitiu intermediar os conflitos que recentemente quase resultam em guerra civil na Bolívia, criou instâncias que facilitaram diálogo da Colômbia com vizinhos belicosos, desestimulou sonhos golpistas no Paraguai e contém arroubos protecionistas na Argentina e hostilidade a imigrantes brasileiros em território boliviano e paraguaio.

Como advertiu ex-presidente da Academia de Negócios Internacionais José de la Torre, em entrevista ao repórter Alex Ribeiro publicada na última sexta-feira, o crescente poder brasileiro, inclusive das empresas nacionais na esfera internacional, já atemoriza vizinhos e ameaça o Brasil de ganhar, entre países menores, uma imagem negativa, "imperialista".

O Brasil, lembra um graduado diplomata brasileiro, somava 36% do Produto Interno Bruto da América do Sul; hoje representa 55%. A postura brasileira não é invenção do governo atual, ainda que Lula seja mais propenso que seus antecessores a justificar governantes vizinhos publicamente e minimizar atritos. Avanço importante, o conjunto de instituições em criação, como o Conselho de Defesa da América do Sul e os diversos mecanismos bilaterais de solução informal de conflitos, merece incentivo do governo que resultar das próximas eleições.


E-mail: sergio.leo@valor.com.br

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