Ilustrando a barbárie

Tréplica de Christian Dunker a Rodrigo Constantino

Christian Ingo Lenz Dunker.



Caro Rodrigo Constantino, seu comentário a meu texto, sobre o declínio da ilustração na direita brasileira, afirma que o apelido “Bob Fields” é uma “expressão pejorativa usada pela esquerda nacionalista”, seguido pela ilação de que “simulo uma suposta nostalgia em relação a esta direita mais nobre”. Isto como se não fosse possível que alguém com um familiar liberal pudesse transformar-se em um “esquerdista lacaniano” – ao que outros complementam: “só pode ser um trauma”. É o que se chama de argumento ad hominem, pelo qual você diz: olhem para esta pessoa, ela está mentindo sobre o próprio avô, a prova disso é o apelido que ele emprega (Bob Fields), não leiam o que ele está dizendo, este ‘desonesto’, mas atentem para suas intenções, que são as da esquerda nacionalista. Em suma, evitem o argumento e olhem bem para quem é este sujeito: lacaniano, leitor de “malucos”, que trabalha com gente do PSOL e que deve ser tomado como uma “cobaia”.

Vou poupar suas críticas ao PT, pois meu texto foi, obviamente, tomado apenas como pretexto para repetí-las. A presença ou ausência do PT é indiferente ao argumento, mas aparentemente você precisa localizar qualquer crítico neste lugar. Entenda, não é porque alguém te critica que este alguém é vermelho, esquerda caviar ou PT. O mundo é maior que isso. Contudo, nunca afirmei que você, nem o movimento que você ilustra, tenha sido paranoico ou radical. Aliás, justamente lhe falta radicalidade, no sentido de remeter a raízes, que você ainda não apresentou. E quanto à paranoia, só vejo, neste caso, a fragilidade banal de quem quer ganhar reputação amealhando preconceito e criando inimigos. Por isso você não consegue admitir que respeito, sim, a direita liberal. Gostaria de ouvir dela mais e melhores razões para o projeto de Brasil que precisamos. Algo que vá um pouco além da eliminação ou desqualificação de adversários vermelhos. Sua resposta, neste sentido, é uma boa ilustração do problema que eu estava a descrever. Em minha réplica bastaria acrescentar: como se queria demonstrar (CQD).

De fato, sinto falta de um José Guilherme Merquior, em seu De Praga a Parisargumentando de forma crítica e instrutiva contra o pós-estruturalismo francês. E você realmente quer comparar um trabalho como este, que teve papel formativo para muitos de minha geração, a livros como O Guia não sei o quê, do Politicamente Incorreto? É vergonhoso. E se não for deixar você vermelho demais, de vergonha, desafio-o a discutir em detalhe qualquer trabalho desta série ou seus análogos. Em suma, a minha pergunta, ainda sem resposta, poderia ser reduzida a: onde está hoje o De Praga a Paris? Virou De Cuba a Miami?

Não percebo humildade alguma em sua atitude, que se recusa responder à pergunta que coloquei, substituindo argumentos por pichações genéricas sobre a esquerda (exatamente como descrevi) em tom de paródia ao meu texto anterior. Você realmente escreveu um livro sobre a romancista Ayn Rand, mas posso depreender disso que você está advogando que a cura para os males do Brasil depende da implementação, em escala moral, cultural e institucional do que ela chama de “egoísmo racional”? Quer dizer que somos demasiadamente altruístas e a solução é aumentar, genericamente, nossa disposição ao individualismo, o que nos fará melhores, segundo a lei geral da inveja aos mais fortes e bem sucedidos? Acho que isso vai terminar, como está terminando, em violência e ressentimento social.

Sim, você traduz obras de Milton Friedman, mas onde está sua coluna dizendo que diante da crise de 2008 devíamos deixar os bancos quebrarem e manter o governo, neste caso o Americano, fora da economia? É isso que chamo demoralidade de ocasião do positivismo brasileiro.

Você não entendeu que meu artigo é sobre a hipótese de declínio, voluntário ou acidental, real ou imaginário, da atitude de ilustração, da qual você é somente um exemplo, quiçá equivocado. Ilustração significa crença no poder libertador do progresso cultural, sem que este acompanhe-se, necessariamente, de transformações políticas equivalentes. Você poderia facilmente ter dito que isso é uma ilusão de minha parte. Que tendemos a achar que o passado era melhor que o presente, pois, como éramos mais jovens e incautos, as ideias liberais pareciam melhores antes do que hoje. Meu texto era sobre o liberalismo, mas parece que você gosta mesmo é de falar de comunismo.

Era fácil ver em meu texto uma alusão à hipótese de que antes o liberalismo criticava a economia, guarnecido na cultura, hoje fala de política sem se exigir explicitar referências, simplesmente apoiado em um moralismo vulgar. Entendo como exemplos de moralismo vulgar sua crítica do estatuto do idoso, sua objeção ao “feriado racista”, sua oposição às cotas raciais, sua defesa do livre mercado de órgãos humanos, sua proposta da privatização da floresta amazônica, sua alusão aos “bárbaros incapazes de reconhecer sua própria inferioridade” (os que participam de “rolezinhos”) e principalmente sua declaração sintética em matéria de saúde mental:

“A verdadeira desordem psiquiátrica é justamente esse esquerdismo doente, que relativiza tudo e não encontra mais parâmetro algum de comportamento decente.” (Rodrigo Constantino. “Pedofilia: uma orientação sexual?”. Veja, 31.10.2013. Página visitada em 20.11.2013.)
Orientação política não pode ser uma patologia, e esta não tem nada a ver com comportamento decente ou indecente. É este tipo de estrepitosa ignorância que vejo representada em sua versão de nova direita liberal. Mesmo assim acho que há algo de fóbico e de francamente não resolvido nesta sua tendência a patologizar os outros, em suas orientações políticas ou religiosas, tendência ademais disseminada entre seus acólitos.

A direita neoconservadora de hoje parece inculta, não porque não tenha méritos ou seus próprios critérios de erudição, mas porque não quer vir para o debate. Cultura não é posse de conhecimento acumulado, mas convivência em conflito de diferenças. Que interesse há em ganhar uma discussão pela métrica de predicados e habilidades? Entendo que você tenha tomado assim a crítica – como um confronto de elites onde o mais forte vence, como diria Ayn Rand – mas aí teríamos que medir títulos, o que você não quer e eu não acho necessário. A questão realmente importante é como sair deste Fla-Flu imaginário que leva a comparação ao território da força, do coro e da quantidade de vozes, em vez do problema real que se está a discutir. Se este é o discurso do liberalismo baseado no “egoísmo racional individualista”, como impedir que a diferença transforme-se em violência?

Você não teve humildade para ver que meu argumento não diz que a esquerda possuiria qualquer forma de superioridade cultural, pelo contrário, afirmo que isso não se espera dela, ainda que de vez em quando aconteça. A comparação que propus não é entre esquerda e direita, nem mesmo entre a direita em geral, ontem e hoje, mas sobre certa direita liberal de hoje e seus antepassados dos anos 1980, se é que os elegi corretamente. Isso você poderia ter corrigido, ou respondido, mas não o fez. A pergunta de fundo não era sobre suas credenciais, mas sobre seu percurso. Seria ele endogamicamente fundado e reproduzido no interior do jornalismo pirotécnico, do sensacionalismo político, ou há alguma experiência, representativa, que o habilite para tal? Caso contrário, entendo seu impulso a ir sempre mais à frente, elevando a voz e incitando a raiva: é uma estratégia para angariar descontentes.

Contudo, a questão mais preocupante, e que me levou a escrever esta réplica, não está em seu comentário, mas no tipo de reação que ele suscita em seus leitores. E este é o problema maior que temos pela frente: o acirramento de posições que se recusam a ceder o mínimo de reconhecimento à parte oposta (como tentei fazer em minha deferência ao liberalismo ilustrado). Um discurso não se mede apenas pelas insígnias de quem o pratica, nem pelo conteúdo de seus argumentos, mas também pelos efeitos que ele produz. E constatei que, no seu caso, suas colocações incitam comentários, que colhi nominalmente no Blog da Veja e no Blog da Boitempo, despertando o seguinte tipo de reação contra meu texto:

“Tinha que ser judeu o imbecil! Ô racinha maldita pra criar intriga e jogar uns contra os outros. Seu lugar é em Aushwitz. (…) Com esse sobrenome ridículo deve [ser] um maldito filho de sião. Zyklon b neles.”

“esquerdopata”, “idiota”, “gente asquerosa!”, “acéfalo”, “pessoas assim merecem o ostracismo”, “o próprio estudo do marxismo já torna o cidadão paranoico”, “imerso nos seus delírios”, “uma besta quadrada”, “boçal”, “sociopatia”, “todo esquerdista é um abestado incurável”, “analfabeto funcional”, “vade retro satanás”, “verme”, “abutre fedorento”, “só se o pai fosse um pulha este comportamento seria explicado”, “esquerdista nojento”, “tem que chutar a canela desses caras”, “a verdadeira face desses canalhas”, “os intestinos estão acima e atrás dos olhos”, “desonestos”, “só existe um jeito dele fazer este bem, é se matando”, “precisa de uma longa terapia”, “malucão uspiano”, “para ser esquerdista, tem que ser canalha”

Se você quer mesmo me tomar como cobaia, vai precisar ilustrar seu experimento melhor que isso.

Comentários

Mais Lidas

O que a mídia de celebridades faz com Anitta deveria ser crime

Guru de Marina disse que é preciso aumentar a carne e o leite

A parcialidade é o menor dos problemas da mídia golpista. Por Léo Mendes