Supremas interrogações

Walter Fanganiello Maierovitch

Ao contrário do que muitos imaginam, os advogados dos réus do processo apelidado de Mensalão não estão a lamber as feridas em face de condenações lançadas. Estão atentos e logo voltarão à ribalta com recursos e ações diversas.

Nesta semana e durante a sessão de julgamento das acusações assacadas contra o publicitário Duda Mendonça, o revisor Ricardo Lewandowski, em mais um dos dissensos com o relator Joaquim Barbosa, animou os acusados e os seus defensores. Para o supremo ministro Barbosa, o revisor era contraditório. Em resposta, Lewandowski aumentou o espectro ao dizer, na base do “sem-querer querendo”, da existência de inumeráveis contradições em supremas decisões. 


1. Embargos de declaração

Depois de publicado o acórdão, fato demorado como regra, cabem embargos de declaração, a ser apreciado em sessão plenária, sobre contradições, omissões e obscuridades. Esse recurso evita o trânsito em julgado e, portanto, a expedição de ordens de prisões.


Dois exemplos ajudam a entender

a) o Supremo Tribunal Federal (STF) levou mais de 40 anos para condenar a regime fechado um parlamentar. Em 2010, a Corte condenou, em regime inicial fechado, o deputado Natan Donadon (PMDB-RO). Isso por crimes de peculato e lavagem de dinheiro. A pena, fora a multa, foi fixada em 13 anos, 4 meses e 10 dias de reclusão.

A condenação, é bom repetir, ocorreu em outubro de 2010 e o STF levou mais de 6 meses para publicar o acórdão. Até essa primeira quinzena de outubro de 2012, e por força de embargos de declaração, ainda não foi expedida ordem de prisão. 

Se usarmos como paradigma o caso do deputado Donadon, os condenados a regime fechado no Mensalão terão mais dois anos para se acostumarem com a idéia de que irão para a cadeia. Tudo se não falecerem e estiverem razoavelmente bens de saúde: o apelidado juiz Lalau cumpre pena na sua mansão por não existir hospital penitenciário adequado.

b) no caso do pedido de extradição ao STF do mafioso Antonino Salamone, mega-traficante internacional de drogas ilícitas, residente em São Paulo onde lavava dinheiro sujo, e com várias condenações definitivas por ser membro do órgão de cúpula (“comissione”) da Cosa Nostra siciliana, o supremo ministro Marco Aurélio, que fez uma estranha engenharia prescricional para negar a extradição, levou anos para redigir o acórdão. Salamone, um associado ao conhecido Tommaso Buscetta, apelidado de “boss dos dois mundos”, morreu de velhice na capital paulista.


2. Embargos infringentes

Por força de uma excrescência chamada foro privilegiado por prerrogativa de função, o Brasil afasta alguns ‘numes’ da jurisdição de juízes de primeiro grau e os coloca, em matéria de acusação criminal, a exame pelos tribunais superiores. Os parlamentares têm no STF o seu foro privilegiado, justificado, por saudosos juristas de um tempo de costumes políticos diversos dos atuais. Para esses antigos juristas não se privilegiava a pessoa do réu, mas se garante o prestígio do elevado cargo.

Num resumo, e como sucede no Mensalão, o STF decide em única instância. Mas, como garantia universal e nos estados democráticos de Direito, consagrou-se o princípio do duplo grau de jurisdição. E isso não porque o vencido (condenado) nunca fica convencido, mas para se garantir reexame por órgãos jurisdicionais diferentes, de modo a reduzir o risco de erros judiciários.

Como no caso do Mensalão o julgamento se realiza em instância única (STF), abre-se, no Regimento Interno da Corte, um recurso especial, denominado de ‘embargos infringentes’. Para a admissão dos ‘embargos infringentes’, são necessários 4 votos absolutórios.

O réu Valdemar Costa Neto contou, no que toca à acusação de formação de quadrilha, com 4 votos absolutórios. Assim, caberão ‘embargos infringentes’. E o acusado João Paulo Cunha, referente ao crime de lavagem de dinheiro, poderá, diante do placar que foi de 6 votos condenatórios contra 5 absolutórios, apresentar, para reexame desse crime de lavagem, ‘embargos infringentes’.

A recente reforma processual penal alterou a disciplina dos embargos infringentes, mas não cuidou de ações originárias no STF, tipo Mensalão. Assim, e para assegurar um segundo reexame, e como a se adequar ao foro privilegiado único a garantia do princípio do ‘duplo grau’, está, à luz da Constituição, mantido a regra, prevista no Regimento Interno do Supremo, de admissibilidade de ‘ embargos infringentes’.

Nos embargos infringentes se sorteia novo relator e espera-se a participação do ministro Teori Zavaski, que ocupará a cadeira decorrente da aposentadoria do ministro Cezar Peluso.



3. Empate e o “in dubio” pau no réu

O presidente Ayres Brito deixou, para o encerramento do Mensalão e quando serão definidas as penas aos réus condenados, a solução de como desempatar. Por exemplo, houve empate na imputação de lavagem de dinheiro atribuída ao deputado João Borba.

Na nossa Constituição impera o princípio garantidor da ‘ presunção de não culpabilidade’, confundido com a ‘presunção de inocência’. Da presunção de não culpabilidade deriva o chamado ‘in dubio pro reo’, ou seja, se a prova é duvidosa, decide-se em favor do réu. O ‘in dubio pro reo’ foi consagrado, no ano 533, pelo imperador Justiniano, no Digesto que indicou a aplicação.

O Digesto indica (D50.17.125) ser melhor, “quando não existir certeza acerca da culpabilidade, que o juiz aceite o risco de absolver um culpado do que condenar um inocente”.

Para o ministro Marco Aurélio, que votou pela absolvição de Borba ao contrário do presidente Ayres Brito que condenou, deve se aplicar o voto da mitológica Minerva, deusa romana da sabedoria. Assim, a Minerva seria Brito, que já condenou.

Minerva, se consultada, mandaria aplicar o ‘in dubio pro reo’, que a jurisprudência do STF consagra para os casos de ‘habeas-corpus’. Aliás, deve ter sido Minerva que fez a indicação contida no Digesto, acima referida. O que não cabe, e para usar uma expressão popular, é o “in dubio” pau no réu.

Por outro lado, com a chegada do novo ministro, Teori Zavaski, ele poderá, depois de ter prazo razoável para estudar os autos em face de regular pedido de ‘vista’ do processo, desempatar.

 
4. A individualização da pena

Os romanos ensinaram e se difundiu, na aplicação do Direito, a regra do ‘summum jus, summa injuria”. Quer dizer que o exercício do Direito em excesso gera injúria excessiva”.

Supremos ministros que deram votos absolutórios terão a consciência violentada caso chamados a aplicar penas em réus, por eles julgados inocentes. Nem que seja para aplicar a pena no mínimo legal. E ministro algum está obrigado a aceitar uma violação de consciência.

As penas, com efeito, devem ser dosadas apenas pelos supremos ministros que condenaram. E não havendo consenso entre os supremos ministros condenadores, um dos critérios poderá ser a adoção da chamada “pena média”. Se chega a ela excluindo-se as mais altas e as mais baixas, evidentemente.

5. Mandado de prisão e uso de algemas

A jurisprudência do STF é remansosa, como se diz entre operadores do Direito. Aquele que respondeu ao processo em liberdade só será privado da liberdade depois do trânsito em julgado da decisão condenatória. Enquanto couber, em matéria penal, recurso ao STF não se dá o trânsito em julgado. Não há possibilidade de execução provisória contra o réu que responde ao processo solto.

O uso de algema, e existe até súmula do STF, só se legitima em caso de necessidade. Não ocorrendo resistência, o seu emprego é criminoso, abusivo No caso do Mensalão não haverá, felizmente, pirotecnia, com condenados algemados tendo imagens difundidas.


6. A lei mais benéfica e a prescrição

Na individualização das penas, os supremos ministros precisarão fixar as datas das consumações dos crimes. 

A reforma penal pela lei 10.763, de 12 de novembro de 2003, aumentou as penas para os crimes de corrupção ativa e passiva. Antes da referida reforma, a pena para o corruptor variava de um a oito anos. Depois de 12 de novembro de 2003, passou de dois anos a doze anos de reclusão.

Por evidente, se os crimes consumaram-se antes de 12 de novembro de 2003, e tudo está a indicar isso, a pena aplicável deverá ser a anterior à reforma, com base na garantia da irretroatividade da lei penal.

No momento, a extinção da punibilidade pela prescrição é regida pela pena maior, abstratamente estabelecida em cada tipo penal. No popular se fala em prescrição da ação penal e o termo inicial é a data do recebimento da denúncia, ou seja, 28 de agosto de 2007.

Individualizada a pena, a prescrição passa a contar não mais pelo máximo previsto na lei penal. Mas, pela pena em concreto. E poderá ser contada da data da consumação ao recebimento da denúncia, que é causa de interrupção da contagem. Ou, da denúncia à publicação da decisão condenatória.

Daí, a importância das datas consumativas para se fixar a lei de regência. Em matéria penal só cabe a retroatividade benéfica ao réu.


7. A Comisão e a Corte Interamericana

A Constituição proclama, nas relações internacionais, a prevalência dos Direitos Humanos e o Brasil, no governo FHC e com ratificação pelo Congresso, aderiu ao Pacto de São José da Costa Rica e está sujeito à Comissão e à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Em tese, qualquer réu do Mensalão, poderá, com alegação de ofensa aos direitos humanos, apresentar petição (reclamação) à Comissão Interamericana, que funciona como filtro para o caso ser decidido pela Corte de Direitos Humanos.

Pelo Pacto de São José da Costa Rica, deve-se garantir aos acusados o duplo grau de jurisdição. O Mensalão tramitou apenas perante o STF, por nossa constituição estabelecer o privilégio do foro.

Não há dúvida que a decisão do STF, em matéria de direitos humanos, só poderá ser soberana se o Brasil rescindir à adesão ao Pacto de São José da Costa Rica. Pelo artigo 5º., parágrafo 3º., “Os tratados e convenções internacionais sobe direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por 3/5 dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. (nova redação pela Emenda Constitucional n.45/2004).

No caso do foro por prerrogativa de função, houve uma opção nacional a favorecer uma casta de privilegiados e nenhum dos réus-parlamentares, e nem os seus partidos, apresentaram projetos para reformar e acabar com o foro privilegiado. É princípio de Direito que ninguém poderá alegar a própria torpeza.

Fora isso, a Corte Interamericana de Direitos Humanas poderá concluir que, no julgamento do Mensalão, foram observadas todas as garantias aos réus, incluído o reexame por embargos infringentes, uma derivação do duplo grau.

Num pano rápido, será legítimo o acionamento da Comissão e da Corte. Não se deve esquecer que a Corte não é para repúblicas bananeiras. Na Europa e com sede na francesa Estrasburgo funciona a Corte Européia de Direitos Humanos com competência para alterar todas as decisões das Justiças dos estados-membros. E a Corte Interamericana já reprovou a decisão do STF que entendeu, pelo voto condutor do então ministro Eros Grau, legítima a lei de auto-anistia preparada para garantir impunidade a sanguinários que cometeram crime de lesa-humanidade.

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