Cerveja: bebendo gato por lebre?

José de Souza Castro na NovaE 

É briga de cachorro grande, mas, com pelo menos 47 anos nas costas tomando cerveja nas noites de sexta-feira, acho que, hoje, tenho o direito de opinar a respeito. Refiro-me ao artigo intitulado "A cerveja: bebendo gato por lebre" , do físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, publicado dia 18 de dezembro último na seção "Tendências/Debates", da Folha de S. Paulo.

Anteontem (14/1), na mesma página, o respeitado físico de 78 anos, voltou a se referir ao tema, desta vez respondendo a artigo assinado por Sílvio Luiz Reichert, publicado dia 30 de dezembro, sob o título "A cerveja e o orgulho de quem faz o melhor".
Para quem não sabe, Cerqueira Leite é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), presidente do Conselho de Administração da ABTLuS (Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron) e membro do Conselho Editorial da Folha de S. Paulo.

E Reichert? “Químico, mestre cervejeiro pela Doemens Fachakademie, da Alemanha, é vice-presidente de Inovação e Desenvolvimento Tecnológico da Anheuser-Busch Inbev”, conforme identificação feita pelo jornal, no fim do seu artigo.

Faltou dizer que a Anheuser-Busch Inbev é a dona da Ambev. Mais dados aqui: http://www.ab-inbev.com/pdf/AR2008_GuideBusiness.pdf. A AB-Inbev, com sede em Leuven, na Bélgica, é a maior companhia cervejeira do mundo, com 120 mil empregados em 25 países. No Brasil, tem 23 fábricas e sua participação no mercado cervejeiro é de 67,5%, segundo o “site” da AB-Inbev.

Feitas as apresentações, vamos ao que denunciou Cerqueira Leite, em seu primeiro artigo:

Quando Brahma e Antarctica se fundiram, contrariando a legislação que impede a formação de monopólios privados no País, argumentaram que só assim poderiam concorrer no mercado globalizado, “mas depois foram gostosamente absorvidas por uma multinacional do ramo, certamente uma forma sutil de realizar a concorrência prometida. E não foi tomada nenhuma providência”.

O Brasil produz entre 200 mil e 250 mil toneladas de cevada por ano, das quais entre 60% e 80% são aproveitados pela indústria cervejeira. Essa produção tem sido suplementada por importação de quantidade equivalente. Essa indústria consome cerca de 400 mil toneladas de cevada. O índice de conversão entre a cevada e o álcool é, em média, de 220 litros por tonelada. As cervejas brasileiras têm teor de álcool de 5%. Assim, seriam necessárias pelo menos 2,4 milhões de toneladas de cevada por ano.

Feitos os cálculos, o álcool proveniente da cevada na cerveja brasileira representa cerca de 15% do total. E de onde vem o restante? Do milho. E o índice de conversão de grão em álcool para o milho é 80% maior que para a cevada. Resumindo, o milho responde por quase três quartos da matéria-prima da cerveja brasileira, “revelando sua vocação para homogeneização e crescente vulgaridade”.

Tudo bem, não fosse um detalhe: “Segundo norma autorregulatória da indústria cervejeira alemã, a cerveja é composta única e exclusivamente por apenas três elementos, cevada, lúpulo e água, tendo como interveniente um fermento. Tradicionalmente, o termo malte designa única e precisamente a cevada germinada”.

Acrescenta o físico, que a malandragem começa aqui: com frequência, lê-se em rótulos de cervejas a expressão "cereais maltados" ou simplesmente "malte", dissimulando assim a natureza do ingrediente principal na composição da bebida. Com a aplicação desse termo a qualquer cereal germinado, a indústria cervejeira pode optar por cereais mais baratos, ocultando essa opção.

E acrescenta Cerqueira Leite:

“Outro determinante da baixa qualidade da cerveja brasileira é a adição de aditivos químicos para a conservação. O mal não está só nessa condição, mas na sua necessidade. O lúpulo em cervejas de qualidade, sejam "lagers", sejam "ales", é o componente responsável pela conservação – além, obviamente, de suas qualidades de paladar. Depreende-se daí que os concentrados de lúpulo usados na cerveja brasileira são de baixa qualidade. O que é inexplicável e de lamentar, entretanto, é que as autoridades brasileiras, tão zelosas para com alimentos corriqueiros, sejam tão omissas quando se trata da bebida nacional mais popular e de maior consumo e permitam que o cidadão brasileiro beba gato por lebre”.

Preferência do consumidor

E o que disse o cervejeiro da Inbev? Principais trechos:

A indústria nacional de cerveja possui tradição de mais de cem anos e tem orgulho de produzir bebidas de altíssima qualidade.

As grandes cervejarias obedecem à legislação brasileira, que determina que a porcentagem de malte (cevada submetida a processo controlado de germinação) contido no extrato que dá origem à bebida não pode ser menor do que 55%.

Mais malte ou menos malte na cerveja é antes de tudo uma opção do mestre cervejeiro na formulação de seu produto. Em algumas marcas de grande penetração no nosso mercado, esse percentual chega a 100%. Trata-se de opção técnica, cujo único objetivo é justamente produzir um produto de acordo com a preferência do consumidor, nunca enganá-lo.

(As marcas importadas) ocupam uma faixa inexpressiva do mercado, por um motivo muito simples: a imensa maioria prefere a cerveja brasileira.

A cevada tem rendimento de 67% na composição do extrato originário da cerveja, enquanto o milho atinge apenas 56% de rendimento.

As cervejarias brasileiras de primeira linha não usam conservante por dois motivos: primeiro, porque é ilegal, trata-se de prática vetada pela legislação; segundo, porque totalmente desnecessário, já que a conservação da cerveja de boa qualidade é garantida pelo seu próprio processo de fabricação.

Esse nível de desinformação se choca frontalmente com o patamar de excelência em que se encontra a indústria brasileira de cerveja.

Não seria o caso?

Para quem gosta de assistir a uma boa briga, o melhor está na resposta do físico , publicada nesta quinta-feira. A começar pelos adjetivos com que qualifica o homem da Inbev: “echadiço”, “trombeta”, “intelectualmente apoucado”, “sofista”, “buzina”, “passavante”, “sarabatana”, “estafeta”, “recadista”. Um bom aperitivo, mas paro aí, pois deve-se ler o artigo completo e não há espaço aqui para reproduzi-lo.
Aliás, a briga não chegou ainda, de fato, à Internet. Na tarde desta sexta-feira, fazendo busca no Google com as palavras-chave “cerveja, Cerqueira leite, Ambev, Reichert”, só encontrei 34 citações. Mas o artigo do físico repercutiu na Ambev. Hoje (15/1), na seção de cartas da Folha, o diretor de Comunicação da Ambev, Alexandre Loures, informou que solicitara a Reichert, “um dos mais renomados mestres cervejeiros do mundo”, que respondesse aos argumentos do primeiro artigo de Cerqueira Leite.

E concluiu:

“Diante da solidez dos argumentos apresentados por Reichert, o senhor Leite preferiu desqualificá-lo, utilizando adjetivos chulos. AmBev emprega 23 mil funcionários e é um dos maiores pagadores de impostos da iniciativa privada brasileira. Merecemos respeito e estamos profundamente ofendidos com a forma vulgar como fomos atacados.

O sucesso dos nossos produtos junto aos consumidores é a melhor resposta que podemos oferecer ao destempero do senhor Leite."

Chulos? E eu que já havia anotado os elegantes adjetivos de Cerqueira Leite, para um possível uso futuro?

No começo do Plano Real, comprava-se uma lata de cerveja por 35 centavos. Pouca coisa se valorizou tanto no Brasil, nos últimos anos. Achamos que respeito é o que merecem os consumidores de cerveja no Brasil e que os imensos impostos pagos e as enormes verbas publicitárias da Ambev não impeçam governo e imprensa de exigir esse respeito.

Esperamos que essa briga de cachorro grande não pare aí. O leitor Mário Pereira, na mesma página da Folha, parece concordar com isso, quando indaga: “Não seria o caso, dada a gravidade do assunto, de o Ministério Público abrir uma investigação? Ou vai ficar por isso mesmo?"

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