A fênix e o abismo

Post do Novae 

Chico Villela

Este artigo foi publicado em 2002. Fala do renascimento de um político que já era corrupto, mas na sombra, e que um dia, como senador da República, foi flagrado em comportamento aético, no “caso da violação do painel de votação do Senado”, ocasião em que agiu instigado por ACM. Após divergir de seu pai político Joaquim Roriz (cada um tem o pai político que merece), e derrotar as forças rorizistas na última eleição para o inútil e obsceno cargo de “governador” do DF, Arruda finalmente encontrou a trilha do seu sonho de moço: fazer um trampolim para ser presidente da República. Mas, replicando PCFarias/Collor, exagerou na dose, descuidou-se dos detalhes, esqueceu-se dos inimigos, e assim foi mais uma vez “flagrado” em atos ilegais. Mas agora não dá mais: nem para negar, nem para chorar, nem para renascer como as fênix da história.

Arruda arremessou-se de cabeça nos canais de águas servidas e práticas políticas espúrias, como diz o texto ao final. E quem mergulha nisso não sai mais.

É um adeus. Como todos, melancólico.

Leia o artigo:

“[...] a mancha desta eleição está em Brasília. O que se passa na própria capital do país tem um nível de indecência sem precedente desde o fim da Velha República. Os métodos de Joaquim Roriz em seu primeiro governo já deveriam tê-lo expurgado da vida pública, senão até da vida social. Agravou esses métodos como candidato a um segundo governo, e assim foi eleito em 98. Para o pior, em todos os sentidos. Não faltou nada para o impeachment, como nada falta, há tempos, para a impugnação de sua recandidatura. Mas lá estão Roriz e seus comparsas em busca da reeleição. Para o pior.”

(Janio de Freitas, Folha de S. Paulo, 27 out. 2002, p. A5)

A foto não deixa margem a pensamentos outros: o governador reeleito do Distrito Federal, Joaquim Domingos Roriz, aparece abraçado ao deputado federal eleito José Roberto Arruda, seu colega de coligação, um dia após a eleição em segundo turno do governador, na primeira página de caderno do Correio Braziliense, um dos melhores (apego à verdade, ética, técnica jornalística) jornais do país. É o triunfo dos iguais, amigos de longa data que se deram as mãos para impedir que Geraldo Magela, o candidato do PT, se elegesse.

Vitória apertada, com pouco mais de um por cento dos votos válidos, para a qual foi absolutamente decisiva a colaboração de Arruda, eleito com mais de 300 mil votos, e cujo eleitorado quase se confunde com o do governador, valorizada ainda mais pela ressurreição (no Brasil chama-se ‘volta por cima’) do deputado após o doloroso episódio da violação do painel do Senado, ocasião em que negou, depois reconheceu, chorou frente às câmeras, renunciou, consta que sofreu, e emergiu como se sabe.

Como a fênix, mitológico pássaro de fogo que, após viver séculos, talvez cansada de ter de renovar a vida a todo instante, deixava-se consumir numa pira repleta de ervas sagradas, e, após tornar-se cinzas, emergia mais uma vez para a vida, fulgurante e majestosa, para viver mais alguns séculos e renovar seu eterno ciclo.

Há outras fênix além desta egípcia, da qual os gregos se apossaram para transmitir-nos a lenda. Como a chinesa, que nasceu do Sol, com plumagem multicolorida e um trinado melódico de cinco notas. Banhava-se nas águas puras das montanhas K’un-lun e passava as noites na caverna de Tan. Como outros seres imaginários, a fênix contém tudo, yin e yang, macho e fêmea, todos os contrários.

O Distrito Federal é uma fênix dilacerada por seus contrastes. Abriga o Plano Piloto, assim chamado por seu criador Lúcio Costa, que compreende a cidade de Brasília, centro administrativo e político do país, com cerca de 500 mil habitantes, que detém títulos como os de maior (proporcional) concentração de diplomas universitários do país, renda per capita do país, número de carros novos do país, e outras características de afluência e riqueza. Mas o país é o Brasil, e o Distrito Federal também abriga monumentais áreas semiurbanizadas de miséria, ostenta índices de violência equiparáveis aos de Rio e São Paulo, e tem hoje mais de 2 milhões de habitantes, a maioria de pobres e miseráveis.

Nesse cenário antigo, que apenas agravou as condições iniciais da capital, dividida entre uns poucos ricos, uma classe média importada basicamente do Rio e centenas de milhares de migrantes sem qualificação, surge a figura de Joaquim Roriz. Goiano, ex-vereador de cidade do entorno do DF, fez carreira como deputado federal e governador nomeado, abjeta instituição felizmente arquivada pelo avanço democrático pós-ditadura militar. Seu estilo é datado, e tem origem na República Velha: apresenta-se como pai dos pobres, distribui alimentos e lotes da União para novos migrantes, governa como se desconhecesse a ética e a lei, favorece desmandos e corrupção, persegue os ‘inimigos’ e recompensa os ‘amigos’ com cargos e benesses públicos.

A distribuição de lotes públicos atraiu para o DF mais de 700 mil pessoas, ou seja, mais de 150 mil famílias. Os assentamentos foram se transformando em cidades provisórias, para as quais o “governador” fornecia luz e água, e algum alimento. Nesse cenário, parece absurdo clamar contra a ausência de projetos de desenvolvimento, sociais, de inclusão sociopolítica, etc. O que vale é o jogo bruto: Roriz criou um ‘curral eleitoral’, do qual se vale hoje. Mas, fosse só esta a questão, seríamos todos quase felizes.

Roriz vem patrocinando ou favorecendo há anos a constituição de grupos que, encastelados no poder e organizados em quadrilhas, dedicam-se a uma vasta gama de atos ilícitos, como obras superfaturadas, desvios de verbas e assemelhados, e dos quais o mais evidente é a pilhagem de terras públicas. Tem contra si mais de uma dezena de processos por improbidade administrativa, uso irregular de verbas, etc. Suas ligações com os maiores grileiros do DF, os quatro ‘Irmãos Passos’, já eram denunciadas em 1990. À época, foi também denunciado durante a CPI do Orçamento. “A quebra do sigilo bancário de Joaquim Roriz, governador do DF, expõe um esquema com fantasmas e obras superfaturadas”, afirmava a revista Veja. Seu mais famoso laranja era o capataz de sua fazenda, que “movimentava”, sem saber, milhões de dólares que iam para empresários, jornalistas, deputados distritais.

Seus métodos políticos justificam a fama. Nestas eleições, Roriz prometeu aos eleitores dinheiro (R$ 100 mensais), bujões de gás, cestas básicas, auxílio a universitários, salários aos professores (também prometidos na eleição passada e ‘esquecidos’ durante o mandato), etc. Seus ‘partidários’, pagos a R$ 30 diários, espancaram dezenas de petistas, quebraram carros com bandeiras vermelhas, intimidaram principalmente os mais humildes, até mesmo dentro de seções eleitorais, debaixo dos olhos cansados e míopes da “justiça eleitoral” do DF. Sua mais espantosa atitude foi solicitar, e obter de um “juiz”, a censura prévia ao Correio Braziliense, exercida por um oficial de Justiça e por seu advogado, e que mereceu repúdio unânime no país e no exterior, a tal ponto que Roriz tentou ‘negar’ a autoria. O Correio diariamente denuncia as falcatruas de Roriz, e precisava ser calado às vésperas do voto.

É este candidato que José Roberto Arruda elegeu, numa atitude que produziu espanto entre muitos de seus amigos e admiradores, que, na expectativa da manutenção da atitude que tivera no confronto anterior entre Cristovam Buarque, ex-governador do PT, e Roriz, apostavam em sua neutralidade, após o difícil e delicado momento psicológico que viveu. Arruda foi secretário de Obras de Roriz, período no qual consolidou seu eleitorado, já que, à época, Obras compreendia quase tudo: água, energia elétrica, metrô, obras urbanas, território, uma supersecretaria. Com certeza assumiu compromissos durante a campanha, e talvez tenha feito acordos para o futuro com Roriz, para poder realizar seu sonho de governar o Distrito Federal.

Ao contrário da fênix egípcia, que permite a inferência de um vôo majestoso em direção aos céus após renascer das cinzas, Arruda, homem público, mergulhou publicamente em abismo, escuro como caverna, num momento em que o país manifestava apoio inequívoco a novas formas de governo, éticas e limpas, voltadas para a inclusão social e a retomada do desenvolvimento, do emprego e da dignidade.

Já para seus críticos mais azedos, o deputado federal, ao contrário da fênix chinesa que se banhava nas cristalinas águas das montanhas, teria mergulhado nos canais encobertos por onde correm as águas servidas e as práticas políticas do governador da capital da República.

Todos os homens, especialmente os públicos, devem ter direito a um segundo renascimento. Mas o olhar dos cidadãos tende a ser cada vez mais implacável.

Artigo publicado na NovaE em 2003. O real é atual. Credibilidade não envelhece.

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