Racismo em evolução




Hélio Schwartsman 

Desenvolvo hoje o tema do novo racismo, que abordei na coluna publicada na versão impressa da Folha no último domingo. Ali eu fiz um rápido apanhado de um livro recém-publicado nos EUA que me parece importante. Trata-se de "Blindspot: Hidden Biases of Good People" (ponto cego: vieses ocultos de pessoas boas), dos psicólogos Mahzarin Banaji (Harvard) e Anthony Greenwald (Universidade de Washington).

A tese central dos autores é a de que o racismo mudou, mas para chegar a ela é necessário antes desvendar alguns segredinhos sujos da alma humana.

Muito por culpa de uma tradição filosófica que remonta a Platão e teve seu apogeu com os iluministas, no século 18, nos acostumamos a pensar nossas mentes como uma coisa una --um "eu verdadeiro"--, sob comando de uma razão que faz o que pode para resistir aos assaltos das paixões (emoções). Essa visão, entretanto, não para em pé.

Um modelo mais verossímil, que veio à tona nas últimas décadas com base em achados empíricos da psicologia e da neurociência, é o que equipara a mente a um enorme concerto de diferentes facções cerebrais, que competem umas com as outras para obter o controle sobre o comportamento. Nada impede que diferentes módulos tenham "opiniões" distintas sobre um mesmo tema. Triunfa a parte que, naquele instante, gritar mais alto, calando as vozes dos circuitos neuronais concorrentes. Imagens já utilizadas para descrever a situação incluem pandemônio e democracia representativa.

Pior, nós nos deixamos influenciar por fatores de cuja existência nem sequer suspeitamos. Há uma lista telefônica de experimentos que mostram que nossos pensamentos e decisões podem ser manipulados por itens tão diversos como música ambiente, temperatura, nível de glicose no sangue, imagens apresentadas subliminarmente, sem mencionar, é claro, as preferências e inclinações inatas que carregamos sempre conosco.

Nesse contexto, soa menos absurda a noção de que uma mesma pessoa possa ter atitudes preconceituosas e defender as ideias igualitárias tidas como autoevidentes nas sociedades contemporâneas. Não faltam exemplos de celebridades apanhadas em flagrante delito de intolerância étnica. A lista inclui os atores Mel Gibson e Charlie Sheen e o estilista John Galiano pegos fazendo declarações antissemitas e o cientista James Watson e a atriz Paris Hilton que falaram mal de negros, para nomear uns poucos.

Quem primeiro percebeu esse caráter multitudinário do racismo e dos preconceitos em geral foi o psicólogo polaco-britânico Henri Tajfel (1919-82). Seus trabalhos dos anos 70 já sugeriam que processos de categorização às vezes ganhavam vida própria e ditavam o comportamento das pessoas sem que elas tivessem muita consciência disso. Não obstante, até o final dos anos 80, a visão dominante entre psicólogos era a de que a discriminação era um ato consciente e intencional.

O panorama começou a mudar a partir de 1988, quando um dos autores de "Blindspot", Anthony Greenwald, em companhia de Debbie McGhee e Jordan Schwartz, desenvolveu o Teste de Associação Implícita (IAT, na sigla inglesa). O IAT não apenas abre uma janela para que acessemos nossos preconceitos latentes como ainda permite que os meçamos objetivamente.

Desnecessário dizer que isso revolucionou os estudos na área.

Eu já havia explicado numa coluna mais antiga como o IAT funciona, mas, dado que isso é central para compreender o tema de hoje, refaço a empreitada.

Considere a seguinte lista de palavras: João, Joana, irmão, neta, Beth, filha, Miguel, sobrinha, Ricardo, Leonardo, filho, tia, avô, Roberto, Cristina, pai, mãe, neto, Filipe, Sofia.

Agora a releia dizendo para si mesmo "olá" cada vez que encontrar um nome próprio ou de parentesco masculino e "adeus" quando as palavras forem femininas. É fácil, não é mesmo?

Passemos à fase dois.

Agora, sua missão é voltar à lista e dizer "olá" para os nomes próprios masculinos e relações de parentesco femininas e "adeus" para nomes femininos e ligações familiares masculinas. Se você é uma pessoa normal, ficou bem mais difícil. O tempo para desempenhar a tarefa deve ter subido de algo como meio segundo por palavra para três quartos de segundo. Você provavelmente também cometeu mais erros.

O motivo é que, quando rotulamos cada palavra com o "olá" ou o "adeus", nós nos guiamos por nossas associações mentais. Quando elas não trazem desvios, tudo vai muito bem. Mas, quando estão embaralhadas, precisamos de mais tempo para ordená-las. Assim, medindo a diferença na velocidade da resposta entre as fases 1 e 2, cientistas são capazes de mensurar quão fortemente uma pessoa associa determinadas características com uma categoria social.

Troque as relações de parentesco masculinas e femininas pelas palavras relacionadas a ciência e artes respectivamente e teremos uma medida de quanto cada indivíduo se deixa levar por categorias de gênero, associando homens a atividades científicas e mulheres às artísticas.

IATs não precisam se limitar a palavras. As séries podem ser compostas de imagens e mesmo imagens e palavras. Se utilizarmos fotos de pessoas brancas e negras e palavras negativas (mal, fracasso, terrível etc.) e positivas (paz, amor, felicidade, alegria etc.) teremos uma medida dos preconceitos raciais.

No site implicit.harvard.edu/implicit , vinculado à Universidade Harvard, você pode fazer vários IATs online em português. Poderá medir não apenas seu racismo implícito, como também seu preconceito contra gordos, velhos, gays e até seu grau de nacionalismo. Vale, porém, um alerta. Você poderá não gostar dos resultados.

Nos EUA, cerca de 75% das dezenas de milhares de pessoas que fizeram o teste de racismo demonstraram possuir um viés contra negros de moderado a forte. Uma proporção ainda maior revelou ter algo contra os mais cheinhos. Os próprios autores do livro descobriram, contrariados, que são portadores de preconceitos implícitos. E não adianta muito tentar refazer o teste depois. De um modo geral, os resultados tendem a se repetir.

O que significa, porém, ter preconceitos explícitos? Até pouco tempo atrás, ninguém sabia muito bem. Podia tanto ser um impulso inconsciente que mantínhamos sob controle sem grande esforço quanto ser uma espécie de tendência latente, que, embora não esteja sempre no controle, dá as cartas quando baixamos a guarda.

Resultados de várias pesquisas na área começam a pintar um quadro que aponta para a segunda possibilidade. Há uma correlação moderada entre preconceito implícito e atos discriminatórios contra negros.

Banaji e Greenwald expõem esses achados de forma bastante clara e espirituosa, mas, até aqui, o livro não traz nada de muito novo. Conclusões semelhantes constam de várias outras obras. O que me pareceu diferente é a descrição de como o racismo está passando por uma transformação importante.

O sujeito que maltrata negros e os agride física ou verbalmente é uma espécie em extinção. (O livro tem um interessante apêndice que mostra a evolução da opinião pública dos EUA na questão racial). O contingente cada vez menor de gente que ainda acredita em conceitos como o de raça inferior pelo menos aprendeu a ficar calado. É um avanço e tanto, considerando que, menos de 60 anos atrás, nos EUA, ainda vigoravam as "Jim Crow Laws", as leis de segregação racial que criavam distinções jurídicas entre negros e brancos, e organizações como a KKK eram vistas como respeitáveis.

Apesar da inegável melhora e de algumas décadas de políticas de ação afirmativa, efeitos do racismo ainda podem ser vistos e medidos numa série de estatísticas, como renda, desemprego, performance acadêmica, taxa de encarceramento etc. Isso vale tanto para os EUA como para o Brasil.

Como explicar isso? Banaji e Greenwald lançam uma hipótese que me pareceu particularmente interessante. Eles contam a história de uma colega, professora de Harvard e entusiasta do tricô que, um dia, no meio de uma tarefa doméstica qualquer, abriu um corte feio na mão. Ela foi levada ao hospital --a região de Boston tem um excelente sistema de saúde-- e atendida segundo o protocolo. Seu namorado havia explicado ao médico que ela gostava muito de tricô e não queria correr o risco de ter os movimentos da mão comprometidos. O profissional de saúde disse que não achava que haveria problemas e pôs-se a suturar a mão da mulher.

Nesse instante, ela foi reconhecida por alguém que circulava pelo local. Essa pessoa logo a apresentou para o médico que a atendia como uma colega da universidade. Aí tudo mudou. Ele rapidamente suspendeu a sutura e convocou um ortopedista especializado em mão. Em poucas horas a professora estava na sala de cirurgia sendo operada por um papa da quirologia.

Depois que foi identificada como um membro do grupo, ela recebeu o melhor atendimento médico imaginável. Não é que ela antes estivesse sendo negligenciada, mas para receber o tratamento VIP, isto é, para que os médicos envidassem todos os esforços em seu caso, ela teve de ser categorizada como um par.

Banaji e Greenwald sugerem que o novo racismo opera nos mesmos moldes. A diferenciação no tratamento já não se dá por atitudes que visam a prejudicar os negros, mas assume cada vez mais a forma de atos de ajuda a membros do próprio grupo. São as nossas preferências implícitas em ação. Num mundo que depende intensamente de cartas de recomendação, "networking" e conhecidos no lugar certo, isso faz toda a diferença.

Se o novo racismo traz o benefício de não ser violento, apresenta a desvantagem de ser algo muito mais difícil de combater. Afinal, não dá para recriminar alguém por tentar ajudar seus amigos. Há duas perguntas incômodas aqui. A primeira é se leis que punem atos discriminatórios (muitos dos quais podem ser inconsciente e, portanto, não voluntários) são o melhor caminho a seguir. A outra é se nossas preferências intelectuais por uma sociedade justa baseada na equanimidade não encontram uma barreira na irrefreável tendência de seres humanos de favorecer os próximos.

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